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Super-Homem / Matrix - As Idades do Homem # 02

Por Fábio Fernandes

Homem de Carne

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É um dia negro em 2199.

Na linha do horizonte sempre crepuscular, diversas formas bizarras cruzam o céu nublado sobre os campos repletos de cápsulas transparentes com humanos dentro. Você se lembra de sua câmara matricial.

Você não consegue ver as formas bizarras voadoras em detalhes. Não a uma distância tão grande.

Você agora é apenas uma pessoa comum.

Assim como o homem ao seu lado na superfície da terra devastada. Que se aproxima devagar e lhe estende a mão em cumprimento.

— Meu nome é Bruce. — ele diz.

Você não estende a mão.

— Me diga o que estou pensando. — você diz.

— Não posso. — o outro responde, olhando fixo para as formas bizarras ao longe — Você está fora da Matrix.

— O que é a Matrix?

— A Matrix — Bruce finalmente responde, dentro da Oneiros, na segurança dos subterrâneos — é uma realidade consensual na qual a maior parte da humanidade vive hoje.

— Ou seja, o mundo. — você diz.

— Não. — retruca Bruce, fazendo um gesto que abrange o espaço ao seu redor — O mundo é isto. O mundo é o que eu mostrei a você lá fora. A Matrix é uma simulação de como o mundo era há muito tempo.

— Quanto tempo?

— Tempo demais.

É o que parece, embora você não queira admitir. Toda a sua musculatura dói. Parece que você ficou de cama num hospital por anos.

— Você pode estar se perguntando como o seu corpo todo dói tanto. — Bruce comenta.

— Pensei que não podia mais ler meus pensamentos. — você diz, com ironia.

— E não posso. Estou supondo que você esteja pensando nisso porque passei pela mesma coisa que você. Eu e todos aqui.

Então você se lembra.

— Você é Bruce Wayne, o milionário de Gotham City. Dado como desaparecido há anos.

Bruce confirma com um aceno de cabeça.

— Eu vi a luz. — diz, sem esconder a ironia.

Antes que você possa responder, as luzes da Oneiros se apagam. Você ouve um grito de alerta vindo da proa da nave.

Batedores se aproximando.

— Depressa! — você sente a mão de Bruce no seu ombro — Vamos para o bunker. Você vai ficar em segurança lá.

— Não. — é tudo o que você diz. E se esquiva da mão do outro com um safanão.

Você acha o caminho para a proa da nave com relativa facilidade. Seus olhos não conseguem mais enxergar no escuro como antes, mas seu senso de orientação e sua memória fotográfica continuam funcionando. Bem como a velocidade de seu raciocínio.

Em apenas uma saída, você já decorou a posição da escotilha externa da nave. Antes que Bruce consiga fazer alguma coisa, você já chegou à parte mais recuada da proa e sobe a escada metálica que leva ao andar de cima.

E abre a escotilha.

O impacto de metal sobre a sua carne é rápido e devastador. Só não é pior porque, no exato instante em que os tentáculos do batedor atingem seu braço direito, um tênue brilho azulado preenche a nave de cabo a rabo, junto com um zumbido quase subliminar. E a coisa metálica cai inerte ao seu lado. Junto com você. Há cheiro de sangue no ar.

— Idiota! — você ouve a voz de Bruce dizer com amargura. E apaga.

Passam-se horas ou dias? Você não sabe. Sente um sono terrível, maior do que a sua capacidade de se manter acordado. Que aparentemente desceu pelo ralo, bem como todos os seus superpoderes.

Você passa o pouco tempo acordado tecendo suposições.

Bizarro? Não, ele não teria competência para isso.

Mxyzptlk? Talvez... mas, apesar de ter poder suficiente para criar uma ilusão desse calibre, a vaidade não permitiria que ele permanecesse oculto por baixo dos panos por tanto tempo. Ele já teria aparecido para rir de você e se vangloriar.

Você continua sentindo muito sono. Acorda todas as vezes achando que isso não passou de um sonho. Mas não é sonho.

Em algum momento no meio do estupor, você sente um solavanco. Tudo ao seu redor sacoleja. E então você vê um rosto pairando incorpóreo sobre sua cama.

— Chegamos. — a voz é de Bruce, mas você não consegue ver direito o rosto. Tudo ao seu redor tremeluz, como se visto por entre ondas de calor, como se fosse uma miragem. Será que drogaram você?

O Brincalhão? Não, não seria do feitio dele.

O Mestre dos Brinquedos? Você pensa que é uma possibilidade a ser considerada.

Mas não há tempo, nem você está com disposição para pensar. Quando a escotilha principal da Oneiros se abre e você é levado para fora, deitado no que parece uma maca, diversas pessoas vêem você passar. Os poucos rostos que você consegue vislumbrar olham para você com um ar de pena. Você não entende por quê.

Até o momento em que a dor no braço se torna ainda mais difícil de suportar por causa de uma coceira súbita. E você tenta coçar o braço direito.

Só que ele não está mais lá.

Você foi educado na religião de seus pais. Ia à igreja e era temente a Deus. Mesmo quando você descobriu de onde era na realidade, e que no mundo de seus verdadeiros pais o deus que eles adoravam se chamava Rao, você não se abalou. No fundo, você nunca se identificou com Krypton. Muito menos com um deus que deixou um planeta inteiro ser destruído. O Deus dos humanos, com todos os problemas que a Terra atravessa, é muito mais justo (às vezes você pensa que Deus é tão justo que enviou você para ajudar os terráqueos, mas seus pais o ensinaram a ser humilde).

Agora, entretanto, você não tem tanta certeza de qual é a verdadeira divindade.

Porque essa cidade subterrânea, toda metálica, sem nenhum traço de verde, sem a luz do sol, parece uma visão do inferno. O que se torna ainda mais contundente quando você mais uma vez constata que não só não tem qualquer espécie de superpoder como também não tem um braço. Você não é mais um super-homem. Você é menos que um homem.

Por tudo o que estudou na escola dominical em Smallville, você acha que essa cidade, que Lúcifer e seus comparsas chamam de Zion, não tem nada de paradisíaco ou celestial.

Você até acha que isto pode ser o além-vida.

Mas isso não é vida.

A vida em Zion — esta Sião que nada tem a ver com o que você aprendeu na igreja pentecostal — se passa sem eventos. A medição do tempo é feita com base nas visitas dos médicos em seu quarto coletivo no hospital. Você só sabe que anoitece porque a cada tantas horas as luzes exteriores se apagam.

Falar de exterior neste lugar para você é um absurdo. Não há nada até onde a vista alcança a não ser paredes de pedra e máquinas gigantescas de metal. São tantas máquinas que às vezes, dependendo da distância, você não consegue divisar os humanos no meio delas. Não que você se esforce muito para isso.

Você olha para o seu braço direito — ou melhor, para o espaço vazio onde ele ficava — e jura que só quer entender o que está acontecendo.

Você só começa a compreender alguma coisa no dia da visita.

A enfermeira — que, como todos em Zion, não veste branco, mas um cinza-chumbo sujo — aparece na frente, segurando uma prancheta. A reboque, um casal ruivo. Eles estão mais velhos e incrivelmente sujos, mas você os reconheceria em qualquer lugar.

Jimmy.

Lana.

Junto com eles, um sujeito de cabelos pretos cortados rente, que você também reconhece. Ray Palmer.

Mas eles estão mortos.

— Não estamos mortos, Clark. — diz Lana, como se lesse seus pensamentos.

Você já está de saco cheio disso.

Eles passam um bom tempo conversando com você. Agradecendo por tudo o que você fez, e pela amizade que tiveram. E que ainda podem ter, só que de outra maneira agora. Porque eles renasceram. Outra chance lhes foi dada, uma chance que eles querem aproveitar de qualquer maneira, lutando contra as máquinas que escravizam a espécie humana. E você está recebendo a mesma chance. Eles gostariam que você fizesse parte da resistência.

Mas isso é o que eles dizem.

Porque, naturalmente, você não acredita em nenhum deles.

Você só consegue acreditar em Bruce. Porque o mal é palpável. E Bruce não está do lado do bem.

Num dos incontáveis dias idênticos de Zion — você já desistiu de contá-los, afinal eles não existem — o homem cujo nome para você ainda é Lúcifer aparece para vê-lo.

— Eu tenho uma proposta para você. — ele diz.

— Igual à que você me fez da outra vez? — você responde com ironia.

— Quase. — o terrorista parece não perceber que você está irritado — Você poderá voltar à Matrix se quiser. — e arremata — Lá você terá seu braço de volta.

— E meus poderes?

Bruce o encara, sombrio.

— Seus poderes, não. — ele responde depois de alguns segundos — Não podemos fazer nada a respeito. Você foi desconectado da Matrix. Para entrar lá novamente você passará por um processo de criptografia que apagará seus traços. Podemos reconstruir seu perfil até certo ponto. Você estará inteiro de novo. Mas será apenas um homem desta vez.

Isso não é vida.

— Qual é o preço? — você pergunta.

— Convença Lois Lane a se juntar a nós.

Você não consegue se perdoar por ter esquecido de sua esposa.

Há quantos dias você está fora? Como ela está?

Provavelmente muito preocupada. Mas bem.

E fora do alcance desses terroristas. Se não estivesse, Lúcifer não estaria pedindo isso. Ele mesmo já teria seqüestrado Lois e feito o que quer que tenha feito com Jimmy, Lana e Ray. Eles podem até ser reais, mas não estão em seu juízo perfeito.

Por isso eles querem que você volte a Metrópolis. Eles querem que você os leve até Lois. Mas você não vai fazer isso. Não mesmo. É a última coisa em que você pensa depois do sedativo que a enfermeira de cinza-sujo administra na veia do seu braço que sobrou.

Você acorda num beco mais sujo do que o hospital, e bem mais fedorento. É noite, e você sabe disso porque consegue ver as estrelas no céu.

Os edifícios ao seu redor parecem familiares.

Você está novamente em Metrópolis.

Como foi que você voltou? A resposta lhe vem enquanto você massageia os braços doloridos. O sedativo, claro. Lúcifer aproveitou para colocar você de volta à nave e levá-lo de volta para Metrópolis. Você se amaldiçoa por não ter conseguido ficar acordado para registrar a trajetória da nave.

Você continua massageando os braços doloridos. Leva mais tempo do que o costumeiro para registrar o plural. Então você olha para baixo e percebe que seus dois braços estão no lugar. Você sorri.

Você está usando roupas de cor preta e marrom, sujas de fuligem, graxa e suor seco. Não há problema: você poderá colocar suas roupas quando chegar em casa. Pensando melhor, você vai passar em casa apenas para pegar Lois e levá-la para a Fortaleza da Solidão.

Para o alto e avante, você pensa.

E cai no chão.

Com muita dor.

Lúcifer filho da puta.

Felizmente, ninguém consegue reconhecer você. Uma caminhada de vinte minutos e o prédio da rua Clinton aparece à sua frente. Você vai entrando.

Mas o porteiro não permite que você passe do foyer.

Você se apresenta. Mas ele nunca ouviu falar em Clark Kent.

Você começa a ficar irritado. Exige falar com Lois. O porteiro se recusa. Você perde a paciência como há muito tempo não perdia: agarra o sujeito pelo colarinho do jaquetão preto e diz uma frase que você sempre achou de uma grande arrogância, mas que estava reprimida no fundo da sua garganta há muito tempo (o bom de não ter superpoderes é que você não precisa se conter):

— Você sabe com quem está falando?

O porteiro acaba interfonando para seu apartamento.

Mas ninguém atende.

Quando você se vira, o porteiro não está mais atrás do balcão. Em seu lugar, um homem de terno preto e óculos escuros que você já conhece há tempos. E que reconhece você.

— Bem-vindo, sr. Kent. — diz o agente Smith, com seu sorrisinho indefectível — Nós estávamos mesmo procurando você.


Continua.




 
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