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Super-Homem / Matrix - As Idades do Homem # 01

Por Fábio Fernandes

"Tenha pena, Montag, tenha pena. Não as espicace; há tão pouco tempo você pertencia ao mesmo grupo. Elas têm tanta certeza de que viverão para sempre. Mas não viverão. Elas não sabem que isto tudo é um imenso meteoro incandescente que deixa um belo rastro de fogo no espaço, mas que um dia terá de cair. Elas só conseguem ver o rastro, o fogo bonito, assim como você antes via."

— Ray Bradbury, "Fahrenheit 451"

Homem de Aço

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É um dia de sol em 1999. Uma única forma cruza veloz o céu sem nuvens da cidade.

É um pássaro? Um avião?

Não. É você.

Alguém que vela pelas pessoas comuns. Que faz o que as pessoas comuns não podem fazer. Que veio de um planeta distante e descobriu que tinha poderes superiores aos dos habitantes do mundo azul que se tornou seu lar adotivo. E que resolveu usar esses poderes para ajudar os humanos.

Você não é humano. Mas as veias que saltam das costas de suas mãos — e as próprias mãos, de cinco dedos com unhas aparadas rente e pontas calosas, as únicas partes de seu corpo que você vê enquanto voa — parecem dizer o contrário. Você se parece fisicamente com os humanos. Você sente as emoções que os humanos sentem. Logo, você é humano. E nada do que é humano lhe é indiferente.

Por isso você voa tão rápido agora. Porque se preocupa com os donos do mundo que o acolheu com tanto carinho. Você não pode decepcionar esses donos.

O alarme especial da UCE disparou há dois minutos. Isso significa uma ameaça terrorista nível três em curso — uma ameaça do tipo que Maggie Sawyer e sua equipe não podem resolver sozinhos. Sua ajuda é solicitada no local.

Alarmes. Você sente falta do relógio sinalizador de Jimmy. Não que aquele dispositivo fizesse muita diferença para seus sentidos tão superiores. É do seu amigo que você sente falta.

E aí qualquer pena que você pudesse sentir pelos terroristas acaba.

Justiça infinita, choque e pavor, não interessa a tática nem o recurso: esses bandidos sanguinários merecem cada castigo que a sua imaginação puder inventar. E você tem muita imaginação. Houve uma época, em Qurac, que você atacou terroristas sem dó nem piedade. Depois chegou a se arrepender, fazer um mea culpa envergonhado. Mas, ao ver a cidade dourada de Metrópolis — do alto, como sempre, admirando seus arranha-céus reluzentes ao sol e seus habitantes minúsculos como formigas lá embaixo — e pensar nesses invasores de outros países, querendo destruir sua cidade, matar inocentes em nome de questões políticas e religiosas irracionais, ah, isso deixa você tão furioso quanto qualquer humano.

E é nesse estado de fúria mal contida que você pousa no terraço de um dos pilares gêmeos. O pilar Shuster está repleto de agentes da Unidade de Crimes Especiais de Metrópolis. Você não vê Maggie. Quem está comandando as operações é o detetive Turpin.

— Maggie está lá? — você aponta para o pilar Siegel, a cinqüenta metros de distância. Não há ninguém no topo da outra estrutura.

— Positivo. — responde o detetive, sem deixar de mastigar seu indefectível charuto — Eu avisei para ela que é impossível negociar com Lúcifer, mas você sabe como ela é teimosa.

Lúcifer. Você já esperava por isso.

Foi há um ano.

Um atentado cometido pelo grupo de Lúcifer em um hotel onde estava acontecendo uma convenção da indústria de informática. Jimmy e Lana estavam lá para entrevistar o CEO de uma das mais bem-sucedidas empresas de capital aberto.

Os terroristas invadiram o local e mataram todos os seguranças. Explodiram um andar quase inteiro. Os corpos de Jimmy e Lana jamais foram encontrados.

Até hoje você não conseguiu descobrir nada sobre Lúcifer, a não ser seu modus operandi. Ele surge em algum ponto da cidade, comete seus atentados (sempre tirando vidas inocentes) e desaparece através de teletransporte. Usa sistemas de telefonia como veículo.

Você nunca conseguiu pegá-lo. O sujeito é incrivelmente rápido, mesmo para você. É como se ele soubesse exatamente onde você está em cada momento determinado — e sempre aparece no lado oposto da cidade.

Menos hoje. Os pilares gêmeos não ficam tão longe assim da redação do Planeta Diário.

O que coloca todos os seus sentidos em alerta. Um terrorista superconfiante é perigo dobrado.

— Cortaram as linhas telefônicas? — você pergunta.

— Até a telefonia celular por satélite. — responde Turpin — O que é uma merda, porque não dá pra saber se a Maggie está bem.

— Dá, sim. — você diz, voltando sua visão para o outro pilar. Maggie está no penúltimo andar (o de número 165), sozinha, arma destravada na mão, percorrendo sorrateira um corredor que leva a um quarto... forrado com chumbo por dentro.

Você perde apenas mais alguns segundos checando possíveis bombas no interior da estrutura. Não consegue encontrar nada.

— Evacuem os pilares e toda a região no espaço de no mínimo um quilômetro. — você diz.

— Já providenciamos isso. — Turpin responde — Mas vamos precisar de mais alguns minutos.

— Vou tentar ganhar tempo.— você diz. E some num relâmpago vermelho e azul.

Você bem que gostaria, mas não pode ser sutil numa hora dessas: arrebenta a parede de um escritório do 165 e voa na direção de Maggie. Que o recebe de cara amarrada.

— Porra, Super, que negócio é esse? — ela tenta sussurrar, mas as palavras saem quase gritadas — Como é que você me entra aqui assim, seu troglodita?

— Não precisamos de discrição aqui, Maggie. — você explica, sem muita paciência — Não localizei nenhuma bomba no prédio.

— Como é que você tem tanta certeza? — ela olha na direção da porta branca no fim do corredor.

Ela tem razão. O aposento recoberto de chumbo — um truque antigo dos tempos da Intergangue — impede sua visão de raios-x. Poderia até haver um dispositivo nuclear de alguns megatons ali dentro e você não conseguiria localizá-lo.

— É verdade. — você conclui — Por isso você vai comigo para...

Mas quando se vira para encará-la, ela não está mais ali. À sua frente, um homem alto, de terno preto, óculos escuros, cabelos muito finos emplastados na cabeça com algum tipo de brilhantina que não deixa o menor cheiro. Você já conhece o agente especial Smith há algum tempo, desde que essa onda de terrorismo começou. Ele é completamente inodoro. E extremamente silencioso.

— Sawyer já foi, Super-Homem. — diz Smith, sua voz ao mesmo tempo seca e melíflua. Isso incomoda você: não devia ser assim, mas você não gosta desse sujeito — Vamos pegar o terrorista?

De qualquer maneira, você não está ali para brigar com ele. Ambos estão do mesmo lado.

— É mesmo Lúcifer que está ali? — você pergunta.

— O próprio. — responde Smith — O responsável pela morte do CEO da Eléktron, Inc. E, além de Ray Palmer, Lúcifer também matou seus amigos Jimmy Olsen e Lana Lang, se não estou enganado. — você jura que vê o agente Smith sorrir por uma fração infinitesimal de segundo.

A lembrança que ele traz enfurece você mais ainda.

— Ele é meu. — você diz. E desaparece antes que ele possa dizer alguma coisa. Mas o agente Smith apenas sorri.

Você não gosta do agente Smith, mas ele está apenas fazendo o trabalho dele. Assim como você. Porque Lúcifer e seu bando (demônios!, você vocifera para si mesmo) não são terroristas comuns: eles não destroem propriedades nem fazem reivindicações políticas. Eles aparecem do nada e simplesmente começam a seqüestrar pessoas e sumir com elas.

A única destruição imobiliária perpetrada por esse bando foi no episódio da Eléktron, Inc. Segundo o boca-a-boca entre os policiais e agentes da UCE, a culpa teria sido sua. Você entrou rápido demais. Como em Qurac. E isso fez com que Lúcifer perdesse o controle.

Logo depois disso, os homens de preto entraram em cena. Para dar um reforço à UCE; essa era a justificativa oficial. Mas você sabe que a história é outra. Eles estão ali para vigiar você e evitar outros erros.

Mas você tomou cuidado agora. Inspecionou cuidadosamente a área. Além de você e de Smith, não há ninguém dentro do pilar Siegel.

A não ser Lúcifer. Mas só por enquanto.

Porque você vai pegá-lo.

Você pára em frente à porta branca. Dali sua visão não passa. Você se vira para dizer ao agente Smith que evacue o recinto, pois não sabe se alguma coisa pode explodir. Mas ele não está mais lá.

Então você abre a porta.

O aposento é pequeno e, à exceção de uma pequena mesa no centro, não contém nenhum móvel. Sobre a mesa, um telefone. É um modelo Dreyfus, antigo, daqueles de disco em vez de teclas. Preto, sólido. Ligado à parede por um fio.

Em pé ao lado do telefone, um homem olha para você. Ele tem a sua altura, cabelos pretos curtos. Tem o queixo quadrado e olhos pretos frios.

— Lúcifer. — você diz ao encarar o terrorista, que veste um conjunto elegante de jaqueta e calças de couro preto. Que país mesquinho estará pagando pelos serviços desse sádico destruidor, você se pergunta?

— Clark. — ele cumprimenta.

Você nem pisca. Mas está surpreso.

— Você nem pisca, mas está surpreso. — diz Lúcifer — Não vou menosprezar a sua inteligência com rodeios. Eu sei o que você está pensando no momento em que você está pensando. Conheço também a história de sua vida. Toda a história. Da nave de Krypton a Smallville, de Smallville a Metrópolis. Sei que você é Clark Kent, jornalista, casado com Lois Lane, e que você mesmo já se perguntou diversas vezes por que diabos nunca ninguém desconfiou de você antes.

— Lex já desconfiou... — você se pega dizendo. Não consegue controlar. Agora você está surpreso.

— Lex não conta. — diz Lúcifer — O que importa é: como eu sei disso? E você se pergunta: "o que ele é capaz de fazer com esse conhecimento"? Vou abrir a mão, Clark. Por favor, não tente nada. É apenas uma pílula, pode conferir se quiser.

Você não é idiota. Sabe do que esses homens-bomba são capazes. Ele pode estar carregando um dispositivo sensível à sua visão de raios-x. Antes de usá-la na mão fechada de Lúcifer, você a utiliza mais uma vez nos arredores, para ver se existe alguém que possa se ferir.

Não há ninguém num raio de um quilômetro. A UCE cumpriu bem sua tarefa.

Então você confere a mão dele.

— Não é kryptonita, mas acho que você já sabe disso. — e Lúcifer abre a mão.

É uma pílula. Verde.

— Pensei que vocês só trabalhassem com vermelho e azul. — você diz.

— Sim. — o outro responde — Mas esta foi feita sob medida para você. As outras não surtiriam efeito.

— E o que faz você pensar que eu engoliria essa pílula?

— Jimmy Olsen. Lana Lang.

— O que têm eles?

— Quer saber onde eles estão?

Você se cansa. Já viu esse filme antes.

— "O Silêncio do Lago". — Lúcifer diz, como se obedecesse a uma deixa — Você, assim como eu, viu as duas versões. Eu prefiro a holandesa. Você, claro, prefere a americana.

— Na holandesa o mocinho morre.

— Mas você é americano, não é? — Lúcifer dá um sorriso torto.

— Você está insinuando que eles estão vivos?

— Não. — Lúcifer responde — Estou afirmando.

O telefone da sala toca.

— É para mim. — diz Lúcifer.

— Você sabe que, se tentar atender, posso impedí-lo. — você diz.

— Quebrando o fone e minha mão junto. — Lúcifer concorda — Do jeito que você sabe fazer melhor. Truth, Justice and the American Way. Não é esse o seu slogan?

Você o ignora.

— De qualquer maneira — Lúcifer continua — se me impedir, jamais saberá o que pode acontecer.

— Sei que deterei os terroristas.

— Não, não deterá. Nunca. — e Lúcifer estende a mão para pegar o fone.

Você corre na direção dele. E se detém em frente à outra mão. Que continua esticada, mostrando a pílula verde.

Você hesita. E essa hesitação é tudo de que Lúcifer precisa. Ele atende o telefone.

Subitamente, o corpo do homem se desmaterializa na sua frente. Você pega a pílula antes que ela caia no chão.

Para alguém que observasse a cena à distância, praticamente não transcorreu tempo algum entre o desaparecimento de Lúcifer e o que você fez em seguida. Mas para você, acostumado a pensar em femtosegundos (cada femtosegundo é um milhão de vezes mais rápido que um nanossegundo, algo absolutamente incompreensível para um humano), é quase uma eternidade. Você pesa todas as possibilidades.

Mas que droga, você pensa (sem palavrões, claro, isso nem lhe passa pela cabeça): a resposta já está na sua cabeça antes mesmo que você apanhe a cápsula.

Você engole a pílula verde.

É uma longa noite escura. Um poeta espanhol já chamou esses momentos trágicos de "a longa noite da alma". Mas, depois de tudo o que passou logo depois de ingerir a pílula, você começa a ter dúvidas até mesmo da existência desse poeta.

Mais tarde, depois de todo um longo processo — o despertar submerso num casulo, um ruído de cabos se soltando, a dor, o mergulho num canal escuro e fedorento, o resgate por uma nave fracamente iluminada e um sono sem fim — você torna a encontrar Lúcifer.

Não era o que você esperava.

— Seja bem-vindo à Oneiros. — diz o homem à sua frente. Mais magro que o Lúcifer que você viu em Metrópolis. Um pouco mais envelhecido. Você não tem certeza.

É só então que você se dá conta de uma coisa. Mas, antes de poder afirmar sem dúvidas, você faz um teste.

Você tenta correr em supervelocidade até Lúcifer e pegá-lo pelo pescoço. Você não quer matá-lo, apenas lhe dar um susto. E saber onde você está, afinal.

Mas você não consegue fazer nada disso. No segundo passo você cambaleia, zonzo, cai de joelhos e vomita. Faz um esforço enorme para não desabar de cara no próprio vômito.

Você só consegue pensar numa coisa.

Kryptonita verde. A pílula era de kryptonita verde.

Ou pior. E se, por baixo do corante verde...

— Não, Clark. — diz a voz de Lúcifer ao seu ouvido, enquanto o homem ajuda você a se levantar — Não é kryptonita dourada. Você não perdeu seus superpoderes. Você simplesmente nunca teve superpoderes. — e então você sente a mão dele tocar alguma coisa dura na sua nuca — Você foi levado a acreditar que os tinha.

E então, antes mesmo que você pudesse se recuperar e tentar pronunciar alguma palavra, Lúcifer se vira para um outro sujeito, um negro atarracado e musculoso, e pergunta alguma coisa sobre a superfície. E se vira novamente para você:

— Venha comigo. Preciso lhe mostrar uma coisa.

O homem ajuda você a caminhar por entre diversas comportas, mancando, andando lentamente. Você gostaria de recusar a ajuda dele. Você não negocia com terroristas. Mas você foi enganado. De algum modo, esse homem roubou seus poderes. E você precisa de tempo para entender o que está acontecendo.

— Como superser, vindo de um mundo orbitando uma estrela vermelha, você absorvia energia de nosso sol amarelo como uma bateria solar. — o homem continua falando o tempo todo enquanto andam — É um conceito elegante, mas você sabe que não existe nenhuma base física para que isso aconteça. Não há a menor diferença entre uma gigante vermelha e uma estrela amarela G3, a não ser pelo comprimento de onda dos raios emitidos. Os raios UVA e UVB da G3, absorvidos em excesso sem a devida proteção, podem provocar câncer de pele com o tempo. Os raios ultravioletas de uma estrela vermelha dificilmente provocariam o mesmo efeito em um ser humano.

— Eu não sou humano. — você finalmente consegue dizer. Lúcifer olha para você e franze a testa.

— Pode ser que não. — ele admite — Mas, de um jeito ou de outro... — e ele aponta para a janela dianteira da Oneiros, e os campos infinitos de casulos, cápsulas transparentes iguais àquela em que ele acordou depois de tomar a pílula verde. Com seres humanos dentro — todos nós somos baterias, Clark. — diz o homem sombrio — Solares ou não.

Você observa os eternos campos de humanos na superfície da terra devastada. Apenas observa.


Continua.




 
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