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Matrix - Uma História da Primeira Matrix # 02

Por Fábio Fernandes

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"Você sabia que a primeira Matrix foi criada para ser o mundo humano perfeito, onde ninguém sofreria, onde todos seriam felizes? Foi um desastre. Ninguém aceitou o programa. Perdemos safras inteiras. Alguns acham que não tínhamos a linguagem de programação para descrever o seu mundo perfeito. Mas eu acredito que, como espécie, os seres humanos definem a realidade através da desgraça e do sofrimento. Então o mundo perfeito era um sonho do qual o cérebro primitivo de vocês tentava acordar."
— Agente Smith

Leo é um homem realizado.

Ele tem tudo o que sempre quis na vida. Faz o que gosta, e tem a mulher que sempre quis na cama que escolheu.

O trabalho de Leo é mole. Literalmente: é graças aos materiais flexíveis da nanoengenharia que o planejamento urbano da Cidade se mantém organizado e controlado. Do jeito que o Arquiteto criou, há tantos anos. Na hora do almoço, depois de passar parte da manhã ajudando um dos nanodesigners a reconfigurar um lote de aluminaço vitroplastificado que foi entregue ligeiramente fora das especificações, Leo se senta no terraço do prédio mais alto da Cidade, o edifício inteligente e-Tália, e saboreia seu almoço (caldo frio de anis, alcachofras marinadas em algodão-bravo e sashimi de maçã) admirando a bela paisagem.

Leo é um homem realizado.

Até aí, nada fora do normal. Ser feliz não é coisa incomum nesta terra.

Mas de tempos em tempos, Leo ouve boatos sobre pessoas inconformadas, tristes, deprimidas. Até mesmo suicidas.

Sempre que fica sabendo de um caso desses, Leo procura mudar de assunto, desconversar. Isso não é com ele.

Leo pensa em Ariana.

Minha honey baby.

Honey baby.

Quem sabe desses desatinados é sua esposa. Uma mulher extremamente caridosa, que tomou para si a responsabilidade de cuidar dos poucos infelizes nessa terra onde se plantando tudo dá e as pessoas só não andam nuas, com suas vergonhas de fora, porque isso não está na moda — mas, se estivesse (como já esteve algum tempo antes de Leo nascer), jamais seria vergonhoso.

Leo é um homem realizado num mundo de gente realizada.

Os incomodados que se mudem. Ou que se tratem com pessoas como sua esposa.

— Conte seu sonho pra mim. — ela diz.

O homem sentado nos almofadões em frente a Ariana é moreno como ela, mas os cabelos são mais compridos. O rosto com traços indígenas (como quase todos os habitantes da Cidade) é fino e já foi bonito um dia, mas hoje está reduzido a uma máscara de pavor, semelhantes a algumas estatuetas que Ariana já viu em visitas de campo aos Territórios Indígenas que circundam a Cidade. O Implante Cerebral Pessoal de Ariana tem a ficha completa desse homem: Aruanã Tourinho sofre de alucinações visuais e auditivas há dois anos. Passa longos períodos de insônia, semanas sem dormir. Ele insiste em que está num desses períodos (e todos os seus sintomas concordam), mas mesmo assim vive tendo sonhos.

Tourinho conta seu sonho.

Sempre acontece quando ele dobra uma esquina. Por alguns segundos ele não está na rua na qual virou, mas em algum outro lugar: parece uma rua, mas é suja, barulhenta, tem gente demais, veículos metálicos enormes e de aspecto ameaçador. O tempo está ou muito quente ou muito frio, nunca está do jeito certo. Numa das vezes ele olhou para cima: não havia domo atmosférico. Tourinho teve medo de não conseguir voltar para casa.

Por fora, o rosto de Ariana também é uma máscara, mas de tranqüilidade. Por dentro, ela está preocupada. Não é o primeiro paciente nos últimos meses que descreve exatamente os mesmos sintomas. Dois se suicidaram.

Ela não consegue entender o porquê de tanta insatisfação e fuga da realidade. Só sabe que não quer perder mais um paciente.

— Vamos fazer uma meditação agora? — ela pergunta ao homem. Ele faz que sim com a cabeça.

Ambos se posicionam com as pernas cruzadas, a espinha ereta, musculatura relaxada. Ariana verifica primeiro a posição de Aruanã, pede que ele feche os olhos. Um comando simples de voz aciona o som ambiente, que começa a tocar uma melodia com som de cachoeira. Então ela também fecha os olhos.

Ao longo de sua formação como socialista, Ariana aprendeu diversas técnicas de relacionamento e contato para ajudar outros companheiros humanos a viver em sociedade. Uma dessas técnicas é a meditação de resgate: respiração sincronizada e acionamento de onda cerebrais teta e delta para a obtenção de um estado visionário compartilhado. Resumindo para os leigos: ela pode entrar no estado de sonho de seu paciente e trazê-lo de volta de qualquer alucinação que ele esteja tendo.

É uma técnica fácil, dividida em algumas etapas, todas orientadas oralmente pelo socialista. Tourinho já se submeteu a esse tipo de tratamento duas vezes antes. E é por isso que Ariana leva um susto quando ouve a voz dele no seu ouvido:

— Ariana, abra os olhos. — muito nervosismo no tom — Por favor.

Ela abre os olhos, já pensando no que poderá fazer para acalmá-lo.

Mas antes vai ter de descobrir como sair dali.

Eles não estão mais no consultório.

O corredor é comprido, muito comprido. As paredes têm um tom verde-claro muito estranho, que Ariana nunca viu na vida. Ao se aproximar e tocar a parede, ela percebe que a cor é simplesmente acúmulo de sujeira.

Ela respira fundo. Isso não pode estar acontecendo.

Então ela se lembra do motivo que a levou até ali. Vira-se, mas Tourinho não está mais ao seu lado: o homem está descendo o corredor na carreira, como se fugisse de algo. Ariana grita seu nome e vai atrás. A respiração ofegante e a súbita dor no tornozelo direito lhe dizem que o corredor é mais do que uma visão hipnagógica.

O corredor é interminável. Ariana começa a entoar (interiormente, porque por fora ela já está ficando sem fôlego) mantras, sutras, cantos de todos os tipos que sirvam como chaves para despertá-la desse estado e fazer com que ela retorne à realidade.

Antes que consiga qualquer resultado, entretanto, seu paciente interfere no processo mais uma vez. Quando ela finalmente o alcança, depois de fazer uma curva à esquerda, Tourinho está conversando com uma senhora negra na frente de uma porta. Ariana sente cheiro de biscoitos quentinhos.

— Eu já disse a você antes, meu amor. — diz a senhora, com voz suave que alterna estranhamente entre maternal e lascivo — Você não pode ficar aqui.

— Com licença. — diz Ariana. Sonho ou não, ela ainda é a terapeuta social de Tourinho, e responsável por ele durante as consultas — Quem é a senhora?

A mulher vira a cabeça para ela bem devagar, como se não tivesse pressa, ou como se fosse uma máquina. Isso provoca um arrepio involuntário em Ariana.

— Sou amiga dele. E você é Ariana, estou certa?

— Está. — Ariana responde, sem se surpreender. Agora ela tem certeza de que está dentro de uma alucinação de seu paciente. Uma alucinação muito forte e consistente. Vai ser difícil resolver o caso dele.

— Sim, vai ser difícil resolver o caso dele. — a mulher diz para ela — Mas não pelo motivo que você pensa.

Agora Ariana fica surpresa.

— Mas não há tempo, minha querida. — a mulher continua, e pisca para ela — Estou com cookies no forno.

— Mas por que não posso ficar aqui com a senhora? — Tourinho pergunta, o rosto desolado. As mãos tremem ligeiramente. A mulher pega as mãos dele, chega mais perto e toca sua testa na testa dele.

— Porque aqui não é o seu lugar. — ela diz — Fique tranqüilo. As coisas vão mudar em breve. Você não vai mais se sentir tão só.

— Por que a senhora está dizendo isso? — Ariana arrisca a pergunta. Essa alucinação está indo longe demais.

A mulher olha para ela com o rosto inteiramente sério.

— Lamento decepcionar você, Ariana, mas eu não sou uma alucinação. Ainda que essa alternativa pudesse ser melhor, no fim das contas.

— E o que você é então? Onde nós estamos?

— Num lugar onde ninguém pode alcançar vocês, mas essa condição é apenas temporária. Só o que eu posso lhe dizer é que suas perguntas não serão respondidas agora. E que se vocês passarem por aquela porta — ela acena para a frente com a cabeça — tudo voltará a ser como antes.

— Que porta? — Ariana pergunta, virando-se e vendo uma porta onde antes (ou pelo menos ela assim achava) havia um corredor.

— E eu vou continuar me lembrando? — Tourinho pergunta à senhora negra — De tudo?

A mulher o beija na testa.

— De tudo. Mas não vai demorar muito. Espere e confie.

— E eu? — Ariana se pega perguntando — Eu vou me lembrar?

— Não sei. — diz a mulher — Nem todos se lembram. — e se dirige para a porta — Agora vocês vão me perdoar, mas estou esperando visitas e não posso deixar os cookies queimarem.

Tourinho começa a tremer. Ariana percebe que precisa fazer alguma coisa.

"Na dúvida," — ela pensa — "siga a psicose."

Pega o paciente pela mão e abre a porta que a mulher indicou.

Um momento de escuridão. Subitamente, Ariana não consegue mais achar o chão embaixo dos pés.

— Ariana, abra os olhos. — Tourinho repete.

Eles estão no consultório. Exatamente nas mesmas posições em que estavam antes. O paciente olha para ela com uma tristeza profunda, molhada de lágrimas e fala, a voz num fio:

— A senhora entendeu agora?

Em algum lugar — outro lugar que não pertence nem à Cidade de onde Ariana veio nem ao labirinto de corredores encardidos onde ela e seu paciente foram parar — máquinas trocam mensagens.

[erro / cancelamento teste batches 557-565 não efetuado — autorun loop — operação ilegal]

A resposta:

[limpar cache]

Ariana receita um chá de ervas para Tourinho e o manda para casa. Não está tranqüila, não pode estar. Foi real demais.

Aciona o ICP e envia uma mensagem aos próximos pacientes do dia pedindo desculpas e sugerindo remarcar as sessões. Ela precisa ir para casa. Precisa conversar com Leo. Precisa falar, ouvir, precisa de colo. Não é fácil cuidar dos problemas dos outros.

Ainda mais quando o problema é tão...

Tão...

Tão o que mesmo?

Ela não consegue se lembrar. Era algo importante. Ela fica chateada quando isso acontece. Tem acontecido demais ultimamente.




 
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