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Matrix - Uma História da Primeira Matrix # 03

Por Fábio Fernandes

Corrente de Fuga

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"Você sabia que a primeira Matrix foi criada para ser o mundo humano perfeito, onde ninguém sofreria, onde todos seriam felizes? Foi um desastre. Ninguém aceitou o programa. Perdemos safras inteiras. Alguns acham que não tínhamos a linguagem de programação para descrever o seu mundo perfeito. Mas eu acredito que, como espécie, os seres humanos definem a realidade através da desgraça e do sofrimento. Então o mundo perfeito era um sonho do qual o cérebro primitivo de vocês tentava acordar."
— Agente Smith


Por isso eu corro demais.

Corro demais.

Leo corre o quanto pode. Por dois motivos. O primeiro, para se proteger.

A Avenida Tibiriçá é um cemitério.

Corpos caem dos prédios altos como meteoros. Asteróides. É um desastre. Você aprendeu um dia, com sua ALMA, que a palavra desastre vem do grego des-aster: desalinhamento de astros.

Mas as All-Learning MAchines de nada valem agora. Pois elas nunca ensinaram você a sobreviver. Não era preciso.

As cascatas de corpos continuam caindo. Corre, cara, corre.

Ao seu lado, quando ele passa perto do prédio da Morubixura municipal, um corpo se espatifa. Leo só sente os borrifos de sangue. A camisa e a calça, indiferentes, absorvem o líquido invasor, quebram a substância em suas moléculas fundamentais e dissolvem o sangue. A roupa fica limpa. O rosto e o braço esquerdo de Leo continuam sujos. Ele sente um gosto metálico na boca. Só percebe que é sangue quando se aproxima do prédio onde fica o escritório de Ariana.

Por isso eu corro demais.

Só pra te ver, meu bem.

Porque o segundo motivo é Ariana. Ele precisa encontrar sua esposa.

A utopia não é mais o que era antigamente.

No não-espaço, naquele território intersticial que os humanos poderiam chamar (não muito corretamente) de interface, máquinas trocam mensagens:

[procedimento: upgrade

atualizar matriz

carregando Matriz 2.0 — 1%]


Eu devia ter desconfiado, Leo ainda consegue pensar no meio de tanto caos. Devia ter desconfiado naquele dia.

Leo sempre foi um homem pragmático. Para ele, não existe problema que não tenha solução. Por isso, quando Ariana chegou tão estranha naquele dia, ele preparou rapidamente um banho com pétalas de flor-de-planta-que-tudo-cura e madeira-que-dá-em-manso (receita do pajé da família). Toda vez que Ariana chegava carregada com o peso das dores dos outros, bastava um agrado e a energia ruim se dissipava.

Naquele dia não.

Ariana se recolheu em pajelança mínima. Cortou os cabelinhos finos das partes, enrolou num cigarrinho fino e fumou. Agachar não agachou, quem fazia isso era a avó dela, feiticeira, jurava que via e falava com gente de outro mundo. Ariana apenas se sentou na poltrona de vime da varanda e ali se quedou. Leo jantou sozinho, meio incomodado. Leo sempre teve dificuldade de não ser feliz.

Duas horas depois, ela se levantou e disse:

— Agora eu me lembro.

[carregando Matriz 2.0 — 23%]

Leo devia ter desconfiado que daquilo não ia sair coisa boa. Depois que Ariana terminou de contar a história do corredor e da preta velha, a única coisa que lhe ocorreu perguntar foi se o incenso de anda-com-fé que ela costumava usar no consultório não tinha sido forte demais. Nem lembrei de acender o incenso, ela respondeu.

— Será que não era melhor você marcar uma consulta com o pajé Carneiro? — Leo sugeriu. Ariana simplesmente olhou para ele.

— Você acha que isso foi uma ilusão compartilhada?

Ele não diz nada. Não tem resposta.

— Eu mesma achei isso no começo. — ela explicou — Mas a meditação de resgate não funcionou. Então percebi que era tudo real demais, como um estado alterado de consciência.

Leo não acredita nessas coisas.

— Depois que voltei ao consultório — ela continuou — foi como se toda essa experiência tivesse sido demais para minha cabeça. Desci do prédio e de repente eu já não conseguia lembrar mais de nada. Só sabia que havia alguma coisa que eu precisava falar com você, precisava me lembrar. A coisa ficou martelando minha cabeça até agora há pouco. Mas agora eu me lembro de tudo.

— E o que é que você vai fazer com isso?

Agora é a vez de Ariana ficar em silêncio. Ela olha para Leo, que retribui o olhar e sente a mulher colocar uma coisa em sua mão.

[carregando Matriz 2.0 — 47%]

No dia seguinte, eles saíram para o trabalho inquietos, inseguros, inexatos. Leo nunca havia se sentido assim antes. Cansado, sem forças, preocupado. Mais com Ariana do que com qualquer outra coisa.

Chega à construção debaixo de céu escuro. Leo nem lembrou de consultar a previsão do tempo, mas achava que não era dia de chuva. O domo atmosférico que envolvia a Cidade avisava com muita antecedência quando havia necessidade de alguma variação brusca de temperatura.

A manhã não passou em brancas nuvens. Pela primeira vez em muito tempo, Leo preferiu não almoçar. Ficou no térreo, embaixo da marquise ondulada recém-construída pelos nanócitos, e enfiou a mão no bolso da camisa para acender um cigarro de cheiro-verde. Só reparou que estava fitando o cigarro de pêlos de Ariana na palma de sua mão quando um Protetor passou apressado à sua frente, dizendo palavras incompreensíveis no seu transmissor de pulso. À distância, pensou ter ouvido um grito. Olhou para os lados, mais ninguém na rua estreita paralela à Avenida Tibiriçá. Respirou fundo e pensou, que mal fará?

E acendeu o cigarrinho.

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A estação é suja e está absurdamente lotada. O solado fino das suas sapatilhas de lona sente imediatamente a dureza do piso emborrachado não-inteligente. O impacto dos seus pés num chão que não cede suavemente às suas passadas é a primeira coisa que dói.

A segunda é a visão: pessoas com caras tristes, vestindo roupas sujas, cheirando a suor, acotovelando-se com uma falta de respeito impensável. O burburinho é quase ensurdecedor para tímpanos acostumados ao silêncio da cidade grande.

A terceira coisa que dói é seu coração. Só uma coisa atravessa sua mente neste instante.

— Agora eu me lembro. — murmura.

Quando ele chega à porta do edifício, o dia virou noite, o sol foi pro além. Está chovendo forte. É uma chuva fria, estranha. Os pingos machucam sua pele. Mas Leo sente isso de modo quase subliminar. Se ele fosse um programa de computador (e ele sabe, evidentemente, que não é, claro que não), diria que se trata de uma programação de segundo nível.

Mas toda essa racionalização acontece em um compartimento de sua mente ao qual ele próprio não tem acesso neste instante. Ele só tem um objetivo:

— Minha mulher — ele diz ao Protetor que toma conta da entrada do prédio enquanto outros começam a transportar, com o auxílio de MaQas, os cadáveres que começam a atulhar a calçada. Mas mesmo as MáQuinas de remoção antigravitacional não bastam. As armaduras outrora reluzentes dos Protetores estão embaçadas e sujas de sangue.

O Protetor da entrada o olha de cima a baixo e diz:

— Aquele homem — e aponta para alguma coisa indistinguível na massa de cadáveres que estão sendo removidos às pressas com as imensas pás metálicas das MaQas — foi vítima de um surto psicótico. Ele matou sua esposa e se suicidou atirando-se do prédio em seguida. Meus pêsames, senhor.

Leo não assimila a notícia. Ele sabe que o Protetor tem acesso aos seus cookies e sabe imediatamente com quem está falando. Sabe, portanto, quem é a esposa de Leo. E que, portanto, ele só pode estar falando a verdade.

— Onde está o corpo?

— No consultório, senhor. Mas não tenho autorização para deixar ninguém subir até os caciques municipais chegarem.

O barulho às costas de Leo é tão violento que ele estremece. O Protetor imediatamente o empurra para o lado, mas não tem tempo de evitar que um dos passantes se mate com um disparo de arma-de-agulha. Ao lado do homem, um rapaz mais novo tenta pegar a arma da mão do cadáver, mas o Protetor pula em cima dele.

A reação natural de Leo é uma só.

[carregando Matriz 2.0 — 59%]

O consultório está coberto de sangue. No centro, deitada de bruços, sua mulher. Leo não consegue assimilar a cena. Não está acontecendo com ele. Não aconteceu com ela. Não é real.

O fumo e a corrida até ali o deixaram tonto. Ele precisa se apoiar num móvel para não cair. Fecha os olhos para tentar conter a onda de enjôo que vem chegando.

Quando torna a abrí-los, evidentemente, ele não está mais lá.

Não demora a encontrar a porta da preta velha. Que já está esperando por ele, um sorriso nos lábios, fazendo com uma das mãos um gesto para que se aproxime. A outra segura um prato com cookies. O cheiro é delicioso. Leo se sente culpado.

Ao chegar perto da senhora negra, Leo percebe que seu corpo inteiro treme. Ele custa a pronunciar as palavras:

— Estou sonhando, então? Este foi o sonho que minha mulher teve?

A senhora olha para ele. O sorriso que tinha há pouco desaparece do rosto.

— Você não está sonhando. — ela diz — Mas ainda não acordou.

— Como assim?

— Coitadinho. — diz a senhora — Você não faz a menor idéia do que está acontecendo. Infelizmente, não tenho tempo de explicar. Você precisa fazer uma escolha agora: deseja voltar ou seguir em frente?

Ela estende uma bandeja contendo o que, agora ele vê com clareza, é apenas um único e grande cookie. Marrom-escuro com bolinhas vermelhas incrustadas.

— É de cereja. — a senhora diz, sorrindo apenas com o canto dos lábios — Aceita?

Leo estende a mão para o cookie, mas pára com os dedos a um milímetro de distância.

— Se eu aceitar — ele pergunta — o que vai acontecer comigo?

— Você irá para um lugar diferente daquele que você conhece. Bem diferente.

E então, a pergunta mais importante:

— E Ariana?

A velha senhora suspira.

— Sua esposa morreu, meu querido. Ela não volta mais.

Silêncio.

— Esse tal lugar para onde irei é melhor ou pior do que onde eu vivia?

— Depende de como você vê as coisas. Não tem todos os confortos de seu lar, por exemplo.

— Mas não há nada que me lembre Ariana lá.

— Não. Em compensação...

— Não me esquecerei dela. — como havia esquecido do metrô. Como Ariana havia se esquecido da senhora negra.

A velha senhora franze a testa mas dá um sorriso espontâneo.

— Não. — ela responde — Você não se esquecerá dela.

— Então só há um caminho a tomar. — Leo responde, pegando o cookie vermelho.

E dá uma mordida.

[carregando Matriz 2.0 — 89%]

A próxima coisa de que Leo irá se lembrar é de um pesadelo, um pesadelo assustador em tons de verde, a cor exata da garrafa de vinho fortificante de ambrosia que ele tomava aos montes sem nunca se embriagar, e ele pensa neste momento que todas as festas em que bebeu e nada lhe aconteceu finalmente cobraram seu preço, e que as gigantescas máquinas que andam em suas pernas metálicas telescópicas sobre campos cobertos de seres humanos como ele, sem pêlos, inteiramente nus e atravessados de uma ponta a outra de seus corpos por cabos e plugues e imersos em algum líquido que de algum modo não os mata, mas se não mata, que vida é essa, que coisa mais insana, urubus passeando a tarde entre os girassóis e só agora lhe ocorre que os girassóis somos nós? A próxima coisa de que Leo irá se lembrar é de perder o controle dos intestinos quando vê uma dessas imensas criaturas caminhar em sua direção, ao mesmo tempo em que sente nas costas uma chibatada, um golpe que é na verdade a desconexão brusca de todos os cabos ligados ao seu organismo.a próxima coisa de que Leo irá se lembrar é da dor.

E então, a queda.

É tudo tão rápido que Leo não irá se lembrar disso mais tarde. Apenas da sensação térmica de frio intenso ao fim da queda. E de água, muita água envolvendo seu corpo.

A primeira coisa que os olhos fotofóbicos de Leo captam nesse túnel de rocha cheio pela metade de água imunda de dejetos é a luz do que parece uma nave, e numa fração de segundo ele lê algo na carapaça externa que seu cérebro só assimilará bem depois, letras gravadas há muito tempo e já bastante desgastadas, mas que o brilho azulado do túnel onde ele tenta flutuar (à custa de braços e pernas que não obedecem aos seus comandos) consegue de algum modo tornar visível: Hammurabi.

Do lado de dentro da nave, seus ocupantes — habitantes de uma das muitas cidades próximas ao centro da Terra que sobreviveram às máquinas — não conseguem acreditar no que vêem. Os códigos estranhos que eles haviam recebido de algum lugar indetectável horas antes estavam corretos: haveria alguém naquele ponto do sistema de esgotos precisando de socorro imediato.

Pela primeira vez, um humano foi desconectado do sistema espontaneamente.

[carregando Matriz 2.0 — 100%]

O ano é 1999. As ruas da Cidade são sujas e poluídas. Seus habitantes passeiam na sua garoa, mas ninguém te pode curtir numa boa. São Paulo é um lugar bonito, mas perigoso. Assim como o resto do mundo.

Do lado de fora, o ano é 2094. Em tempo real, faltam cinco anos para a Primeira Revolução na Matrix. E outros cem até o Último Escolhido tomar a pílula vermelha.

Mas, na Matrix — agora reformatada com uma nova linguagem de programação para atender aos desejos inconscientes de sofrimento dos homens — , o ano continua sendo 1999.

E será 1999 para sempre.




 
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