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Matrix - Uma História da Primeira Matrix # 01

Por Fábio Fernandes

O Homem Mais Feliz da Cidade

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"Você sabia que a primeira Matrix foi criada para ser o mundo humano perfeito, onde ninguém sofreria, onde todos seriam felizes? Foi um desastre. Ninguém aceitou o programa. Perdemos safras inteiras. Alguns acham que não tínhamos a linguagem de programação para descrever o seu mundo perfeito. Mas eu acredito que, como espécie, os seres humanos definem a realidade através da desgraça e do sofrimento. Então o mundo perfeito era um sonho do qual o cérebro primitivo de vocês tentava acordar."
— Agente Smith

Leo é um homem feliz.

Ele vive no melhor de todos os mundos. Na maior cidade da América do Sul, como dizia uma canção antiga.

O ano é 1999. A maior cidade da América do Sul vive sua idade de ouro. Sob o domo atmosférico cristalino que mantém todos sempre numa temperatura agradável, Leo percorre a pé a Avenida Tibiriçá. Passa pela estátua em molibdênio fluido com a figura imponente de três metros de altura do cacique que marca uma das extremidades da imensa avenida. O metal semilíquido reluz em dezenas de cores com a incidência de raios de sol estrategicamente posicionados, como canhões de luz. O que não estaria longe da verdade: nada que painéis solares na órbita da Terra não providenciem com tranqüilidade.

Leo caminha a passos largos. Nada de pegar carona nas esteiras rolantes; para que tanta pressa? Do mesmo modo, ele pisca os olhos duas vezes e automaticamente desliga todas as funções dispensáveis do seu ICP. O Implante Cerebral Pessoal foi configurado para só ser acionado em caso de emergência.

Mas que emergência? Leo sabe que nada acontecerá para empanar o brilho de seu dia.

Ele pensa naquela canção antiga.

Baby.

Baby.

I love you.

Ele pensa nela.

Ariana.

Leo vai se casar com ela amanhã.

No meio da Avenida, ele passa por um Protetor. O homem, vestido da cabeça aos pés com uma armadura dourada reluzente moldada ao corpo musculoso, o cumprimenta com um sorriso. Leo desativou o implante, mas os Protetores têm acesso a todos os dados dos cidadãos: afinal, eles precisam estar preparados para ajudar em caso de necessidade. Os dados referentes ao casamento já são de domínio público: Leo sabe que o sorriso do agente é uma cortesia e um desejo de felicidades.

Leo é um homem feliz.

Por isso ele desligou o implante. Nos últimos tempos aconteceram muitas coisas estranhas que ele não entende, e sobre as quais não quer pensar.

Pessoas cometendo suicídio.

Pessoas abrindo mão voluntariamente de suas vidas.

"Mas como é que alguém pode querer se matar numa cidade como esta?" — ele pensa, olhando para as torres de cores suaves, mosaicos azuis e verdes se perdendo na imensidão da avenida, entremeadas por casarões de terracota onde crianças brincam, vigiadas de perto pelos pais, que namoram embaixo dos caramanchões de floromônios. Leo passa em frente a um DA, e basta que ele se poste em frente à máquina e peça aquilo que deseja: o Doador Alimentar cria a papa de milho com alcaçuz na hora, retirando tudo dos elementos fundamentais do ar, quebrando moléculas de oxigênio, hidrogênio, carbono e nitrogênio para reconstruir comidas, móveis, objetos de toda espécie. O funcionamento da máquina escapa à compreensão de Leo, mas ele não precisa saber como funcionam essas coisas. Elas sempre estiveram ali e sempre estarão. Livres e gratuitas, para todos, sem restrição de idade, sexo, raça, cor, religião.

Porque todos são iguais na Cidade. Não falta absolutamente nada a ninguém, nem moradia, nem alimentação, nem emprego, nem solidariedade.

Não falta amor na Cidade.

Leo termina a refeição e amassa o copinho de nulopapel. Ele — como quase tudo o que é sólido e é produzido pelos Doadores — desmancha no ar. Até mesmo a sujeirinha de papa que fica entre seus dedos se converte em gases residuais e volta à atmosfera. Nada que você quiser comer deve fazer mal. Barato total.

Ele continua a caminhada, mas agora se sente um pouco cansado. Prefere percorrer o resto do caminho por Teletrô.

Desce a primeira escada em espiral dourada que vê, logo abaixo do poste com o "T" desenhado em grafia art-nouveau, e entra na estação subterrânea. Poucas pessoas a essa hora. Quase não há fila para os portais.

Leo olha fixo na direção do fino poste de laser verde de varredura, que lê sua retina e acessa seus dados de mapeamento. O portal se configura automaticamente para a estação à qual ele deseja ir. É só atravessar a fina película prateada que parece mercúrio líquido e ele já estará lá.

E é o que Leo faz.

A estação é suja e está absurdamente lotada. O solado fino das suas sapatilhas de lona sente imediatamente a dureza do piso emborrachado não-inteligente. O impacto dos seus pés num chão que não cede suavemente às suas passadas é a primeira coisa que dói.

A segunda é a visão: pessoas com caras tristes, vestindo roupas sujas, cheirando a suor, acotovelando-se com uma falta de respeito impensável. O burburinho é quase ensurdecedor para tímpanos acostumados ao silêncio da cidade grande.

Leo se vira para voltar à estação de onde veio, mas o portal não está mais lá.

Pela primeira vez em muitos anos de sua curta vida, Leo sente medo.

A terceira coisa que dói é seu coração. Só uma coisa atravessa sua mente neste instante.

Baby.

Baby.

Como dizia aquela canção antiga.

Você precisa.

Você precisa.

Você precisa voltar para casa.

Porque este lugar não é seu lar.

Em algum lugar — outro lugar que não pertence nem à Cidade de onde Leo veio nem à estação suja onde ele foi parar — máquinas trocam mensagens umas com as outras numa linguagem incompreensível mesmo para os homens que as criaram e as programaram pela primeira vez.

A mensagem é clara, sem ruídos nem dubiedades:

[procedimento / teste batch 233 efetuado — simulação concluída com sucesso]

A resposta vem em menos de um nanossegundo:

[encerrar simulação batch 233 — reinicializar protocolos originais]

A volta é tranqüila. Quando volta a se virar para encarar a multidão aterradora, Leo só vê a placidez da estação do bairro da Fraternidade, próximo à sua casa. Ele não tem a menor lembrança do que acabou de acontecer.

Ainda bem.

Porque Leo é um homem feliz. Ele não sabe — ainda — mas pertence a uma espécie em extinção. As pessoas felizes estão morrendo na Cidade.

Isso não vai ficar assim por muito tempo. As máquinas estão pensando em algo. Elas sempre pensam.

Mas, enquanto isso, Leo percorre tranqüilo as ruas largas e bem pavimentadas da Cidade, na direção de sua casa. Ele se casará amanhã e terá uma vida feliz.

Mas isso também não vai ficar assim por muito tempo.



 
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