|
Por
Conrad Pichler
Perto Demais do Coração da Tempestade
Olá! Como vai? é uma pergunta retórica Ah, eu vou bem. Sabe, um amigo me disse exatamente assim: "depois de morto a gente tem 90 dias pra andar por aí e ver o mundo."
Ele pára no meio da calçada, alheio aos passantes:
Deixa eu te contar uma coisa, o mais estranho é que, inconscientemente, fui levado pra Dropsie e aqui para o número 55. Não, não há mais um cortiço, nem mesmo aquelas pessoas esquisitas que rondavam esse bairro lá em 1900 e bolinha andam por aqui. Agora, tem um edifício aqui... edifício?! He, he! O velho Spirit ia rir de mim... ele sempre disse que eu era mais piegas que ele...
Erguendo sua cabeça grisalha, ele observa a fachada do prédio. Mas antes, vira-se para seu interlocutor mudo:
Nunca te contei isso mas me barraram uma vez na entrada da Marvel: "Quem sou eu? Eu sou Will Eisner, oras! O artista gráfico... quadrinhista... romancista gráfico... blah!" ele ri Quem se importa com a terminologia?!?! Vamos lá, sei que meu tempo está se acabando e tenho que subir esses 90 andares...
O velho Will começa a subir os degraus que levam ao terraço. Eu sigo atrás desses dois "cabeças brancas", furtivamente.
A escada intercala os corredores dos quartos. Assim, ele vê as pessoas. Nos três primeiros, vê imigrantes judeus, da Europa Oriental, russos e italianos. Tem um cara engraçado com nariz quadrado que sempre "chuta as bundas dos vizinhos". Will está muito "espirituoso" hoje:
Ei, compadre?! É, você mesmo! o "gigante" italiano, sapato duas cores, olha nos olhos do artista Tá na hora de você dar o fora...
Quem vai...?
Com um soco no estômago e outro no queixo, ele põe o galalau italiano para correr:
Eu estou falando, adorei esse pós-morte! Eu mal sabia desenhar cenas de luta, e estou aqui dando espetáculo digno de você, amigo... o "amigo" sorri, eu também... afinal "as minhas cenas de luta" eram sempre bem desenhadas.
Eisner continua a subir. No quadragésimo, vê os apartamentos transformados em escritórios, cheios de gente indo e vindo...
A gente fazia "literatura de guerra", era como eles chamavam... isso aqui está igualzinho aos estúdios na época da Segunda Guerra... mas não se engane, o Spirit já rondava entre os vivos. He, he!
Eu? Porque ele tinha que falar logo agora?!
O velho quadrinhista pára diante de uma porta e olha para dentro. Vê páginas e mais páginas de artes espalhadas por todos os lados. Talvez umas centenas de páginas de super-heróis e soldados heróicos em batalha épicas:
Já devo ter falado isso umas mil vezes em vida. Mas sempre vale repetir: "fuja dos super-heróis!". Ou, ainda: "quem se importa com caras fantasiados e com as cuecas pra fora?". É de admirar que eles tenham namoradas... ah! isso me faz lembrar que nessa época eu arrumei uma "gatinha", que me perseguiu a vida toda: Ann!
Ele entra, caminha por entre as pranchetas, as mesas de luz, as palhetas cheias de tinta. Respira fundo o cheiro que exala dos produtos, da madeira das mesas. E expira fundo. Eu devia ter dito a ele que já não precisa mais fazer isso.
Ah! E ainda dizem que isso era o inferno! ele toca num grafite, procura um papel branco, rabisca um soldado de escudo nas mãos Acho que já alguém fez isso, amigão... he, he, he!
Will segue para fora, escadas acima.
Quinqüagésimo andar. Unf! ele deixa, sem querer, uma lágrima vir aos olhos Todas as portas estão fechadas, trancadas e seladas... não devem nem ouvir minha voz lá dentro... McCarthy deve ter passado por aqui, ou foi aquele doido do psicólogo alemão? ele pára para coçar os olhos Tá, vamos seguir em frente, mesmo que em rumo diverso...
Ainda chateado, nem quer parar no sexagésimo. No sexagésimo-nono, ele reza pela sua filha. Acho que foi assim, sem perceber, ele me deixou de lado.
Ele só retoma o "fôlego" no septuagésimo-oitavo.
Sabe quantas vezes eu subi e desci essas escadas, na época do meu "Contrato"? Centenas! Cada vez que cheirava o ar daqueles imigrantes, nos primeiros andares, tinha uma nova idéia... já me falaram que sou muito "pró-semita", mas você tem que ser sincero com suas raízes! Você sabe. Se a gente não é sincero com o que a gente faz, tudo fica muito canastrão... feito o Spirit. He, he! Ainda bem que não foi ele que veio me buscar, mas você... você é que pensa, velho Will, você é que pensa!
Daqui para diante, a cada andar, Will desenterra uma velha lembrança. O fundo para promover os quadrinhos, o prêmio que levou seu nome. Mas o que mais dá brilhos nos olhos dele é:
Os romances gráficos! He, he! Eles levaram a sério esse nome... se bem que é meio cacofônico, mas... he, he, he!
Ele cita cada um, lembra de detalhes do que pensava ao fazê-los. Não vou fazer isso, também, porque meu negócio é ação:
Queria tanto que isso fosse coisa de "gente grande"! Coisa que valesse a pena. Os livros teóricos com nomes pomposos e "graphic novel" estampado em diversos "gibis"... a cada ano, eu queria produzir mais e mais! Eu ia nas convenções e dava uns tapinhas nas costas dos moleques que "começaram ontem"... lembro que você também ia... sempre meio "estranhos no ninho", não é?
Ele lembra do Brasil, do povo que o adora sem ter lido um terço do que publicou (bem, eles leram Spirit!). Fala da Europa e de um certo revanchismo. Mas ri sempre, acho que prefere pensar em caipirinha do que nos bigodões franceses. Bem, eu prefiro.
Enfim, o terraço:
A vida não devia ser contada em anos. Devia ser contada em degraus. Tem gente que vive anos e fica sempre no mesmo degrau. Tem outros que vivem pouco e chegam ao topo. Eu levei 87 anos para subir 90 andares... minha média está boa, que você acha, Jack?
É, ninguém vive pra virar semente. diz Jack Kirby. Sim, o "outro cara", é o Jack Kirby.
Olha lá! A tempestade tá vindo...
Você já passou muito tempo perto demais do coração da tempestade, Will. diz o outro velho artista.
Você acha que valeu a pena, Jay?
Cada pena, cada grafite, cada pincel, Willy! os dois riem dessa piada que só artistas acham engraçada.
A tempestade se aproxima luminosa, mais clara que um sol. Os dois amigos se abraçam. E num clarão único e surdo, eles somem. diz um jovem tirando o chapéu e a máscara azuis Bem, eu tenho que continuar aqui... se não for o velho Will, outro vai vir e fazer alguma coisa comigo. Como sempre disse: "sou Denny Colt, estou às suas ordens".
Um cumprimento ao velho Will.
|
|