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Eisner # 02

Por Conrad Pichler

Perto Demais do Coração da Tempestade

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— Olá! Como vai? — é uma pergunta retórica — Ah, eu vou bem. Sabe, um amigo me disse exatamente assim: "depois de morto a gente tem 90 dias pra andar por aí e ver o mundo."

Ele pára no meio da calçada, alheio aos passantes:

— Deixa eu te contar uma coisa, o mais estranho é que, inconscientemente, fui levado pra Dropsie e aqui para o número 55. Não, não há mais um cortiço, nem mesmo aquelas pessoas esquisitas que rondavam esse bairro lá em 1900 e bolinha andam por aqui. Agora, tem um edifício aqui... edifício?! He, he! O velho Spirit ia rir de mim... ele sempre disse que eu era mais piegas que ele...

Erguendo sua cabeça grisalha, ele observa a fachada do prédio. Mas antes, vira-se para seu interlocutor mudo:

— Nunca te contei isso mas me barraram uma vez na entrada da Marvel: "Quem sou eu? Eu sou Will Eisner, oras! O artista gráfico... quadrinhista... romancista gráfico... blah!" — ele ri — Quem se importa com a terminologia?!?! Vamos lá, sei que meu tempo está se acabando e tenho que subir esses 90 andares...

O velho Will começa a subir os degraus que levam ao terraço. Eu sigo atrás desses dois "cabeças brancas", furtivamente.

A escada intercala os corredores dos quartos. Assim, ele vê as pessoas. Nos três primeiros, vê imigrantes judeus, da Europa Oriental, russos e italianos. Tem um cara engraçado com nariz quadrado que sempre "chuta as bundas dos vizinhos". Will está muito "espirituoso" hoje:

— Ei, compadre?! É, você mesmo! — o "gigante" italiano, sapato duas cores, olha nos olhos do artista — Tá na hora de você dar o fora...

— Quem vai...?

Com um soco no estômago e outro no queixo, ele põe o galalau italiano para correr:

— Eu estou falando, adorei esse pós-morte! Eu mal sabia desenhar cenas de luta, e estou aqui dando espetáculo digno de você, amigo... — o "amigo" sorri, eu também... afinal "as minhas cenas de luta" eram sempre bem desenhadas.

Eisner continua a subir. No quadragésimo, vê os apartamentos transformados em escritórios, cheios de gente indo e vindo...

— A gente fazia "literatura de guerra", era como eles chamavam... isso aqui está igualzinho aos estúdios na época da Segunda Guerra... mas não se engane, o Spirit já rondava entre os vivos. He, he!

Eu? Porque ele tinha que falar logo agora?!

O velho quadrinhista pára diante de uma porta e olha para dentro. Vê páginas e mais páginas de artes espalhadas por todos os lados. Talvez umas centenas de páginas de super-heróis e soldados heróicos em batalha épicas:

— Já devo ter falado isso umas mil vezes em vida. Mas sempre vale repetir: "fuja dos super-heróis!". Ou, ainda: "quem se importa com caras fantasiados e com as cuecas pra fora?". É de admirar que eles tenham namoradas... ah! isso me faz lembrar que nessa época eu arrumei uma "gatinha", que me perseguiu a vida toda: Ann!

Ele entra, caminha por entre as pranchetas, as mesas de luz, as palhetas cheias de tinta. Respira fundo o cheiro que exala dos produtos, da madeira das mesas. E expira fundo. Eu devia ter dito a ele que já não precisa mais fazer isso.

— Ah! E ainda dizem que isso era o inferno! — ele toca num grafite, procura um papel branco, rabisca um soldado de escudo nas mãos — Acho que já alguém fez isso, amigão... he, he, he!

Will segue para fora, escadas acima.

— Quinqüagésimo andar. Unf! — ele deixa, sem querer, uma lágrima vir aos olhos — Todas as portas estão fechadas, trancadas e seladas... não devem nem ouvir minha voz lá dentro... McCarthy deve ter passado por aqui, ou foi aquele doido do psicólogo alemão? — ele pára para coçar os olhos — Tá, vamos seguir em frente, mesmo que em rumo diverso...

Ainda chateado, nem quer parar no sexagésimo. No sexagésimo-nono, ele reza pela sua filha. Acho que foi assim, sem perceber, ele me deixou de lado.

Ele só retoma o "fôlego" no septuagésimo-oitavo.

— Sabe quantas vezes eu subi e desci essas escadas, na época do meu "Contrato"? Centenas! Cada vez que cheirava o ar daqueles imigrantes, nos primeiros andares, tinha uma nova idéia... já me falaram que sou muito "pró-semita", mas você tem que ser sincero com suas raízes! Você sabe. Se a gente não é sincero com o que a gente faz, tudo fica muito canastrão... feito o Spirit. He, he! Ainda bem que não foi ele que veio me buscar, mas você... — você é que pensa, velho Will, você é que pensa!

Daqui para diante, a cada andar, Will desenterra uma velha lembrança. O fundo para promover os quadrinhos, o prêmio que levou seu nome. Mas o que mais dá brilhos nos olhos dele é:

— Os romances gráficos! He, he! Eles levaram a sério esse nome... se bem que é meio cacofônico, mas... he, he, he!

Ele cita cada um, lembra de detalhes do que pensava ao fazê-los. Não vou fazer isso, também, porque meu negócio é ação:

— Queria tanto que isso fosse coisa de "gente grande"! Coisa que valesse a pena. Os livros teóricos com nomes pomposos e "graphic novel" estampado em diversos "gibis"... a cada ano, eu queria produzir mais e mais! Eu ia nas convenções e dava uns tapinhas nas costas dos moleques que "começaram ontem"... lembro que você também ia... sempre meio "estranhos no ninho", não é?

Ele lembra do Brasil, do povo que o adora sem ter lido um terço do que publicou (bem, eles leram Spirit!). Fala da Europa e de um certo revanchismo. Mas ri sempre, acho que prefere pensar em caipirinha do que nos bigodões franceses. Bem, eu prefiro.

Enfim, o terraço:

— A vida não devia ser contada em anos. Devia ser contada em degraus. Tem gente que vive anos e fica sempre no mesmo degrau. Tem outros que vivem pouco e chegam ao topo. Eu levei 87 anos para subir 90 andares... minha média está boa, que você acha, Jack?

— É, ninguém vive pra virar semente. — diz Jack Kirby. Sim, o "outro cara", é o Jack Kirby.

— Olha lá! A tempestade tá vindo...

— Você já passou muito tempo perto demais do coração da tempestade, Will. — diz o outro velho artista.

— Você acha que valeu a pena, Jay?

— Cada pena, cada grafite, cada pincel, Willy! — os dois riem dessa piada que só artistas acham engraçada.

— A tempestade se aproxima luminosa, mais clara que um sol. Os dois amigos se abraçam. E num clarão único e surdo, eles somem. — diz um jovem tirando o chapéu e a máscara azuis — Bem, eu tenho que continuar aqui... se não for o velho Will, outro vai vir e fazer alguma coisa comigo. Como sempre disse: "sou Denny Colt, estou às suas ordens".

Um cumprimento ao velho Will.




 
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