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Eisner # 01

Por Fábio Fernandes

Longa Jornada Noite Adentro

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— Então é isso. — você pensa ao desligar a TV — O velho morreu.

A vida é feita de mortes. Você sabe disso — porque já morreu uma vez.

Mas isso foi num tempo de sonhos, numa era de ouro onde tudo podia acontecer — até os mortos podiam ressuscitar. Fosse hoje e você não teria escapado. Assim como o velho não escapou.

— Ninguém nunca escapa no fim. — você pensa, ao ver seu rosto no espelho do banheiro. Até que está bem conservado, apesar das rugas e dos cabelos brancos. Porque um dia a gente cresce. E guarda a máscara no armário.

Mas isso não significa que você seja medíocre. Não, de jeito nenhum. Você sabe que fez sua parte. Assim como Dolan. E Ébano. Tremendo sujeito, o Ébano. Até hoje você não se conforma com a morte dele. Ninguém se conforma: um dos netos dele, paramédico em Nova Jersey, culpa você pelo que aconteceu. Você se lembra de um Dia de Ação de Graças em que ele chamou você de racista. Você não teve mais coragem de voltar à casa da viúva de Ébano depois disso.

Bem que você gostaria de uma bebida agora — só que você não bebe. Nunca bebeu. Sempre foi um sujeito saudável, fã de esportes, de comédias românticas. O que hoje chamariam de conservador. Se tivessem visto a quantidade de marginais que você espancou ao longo de tantos anos, não diriam um negócio desses. Sabe lá.

Você volta para a sala, e os olhos se dirigem automaticamente para um quadro na parede. Na verdade é um quadrinho, ou melhor dizendo, uma página original de quadrinhos. Presenteada a você pelo velho em pessoa. Naquele tempo ele era apenas um moço, um rapaz cheio de vida e esperança que tornou você conhecido no mundo inteiro graças às histórias que contou a seu respeito.

Claro, nem tudo ali era verdade. Principalmente as histórias de ficção científica. Duas ou três eram sobre viagem no tempo, se você não se engana.

— Meu Deus! — você pensa — Onde é que está a coleção, não consigo mais me lembrar que histórias eram...

Você decide procurar a coleção, mas pensa melhor, volta e se vira desajeitado, como se ainda estivesse na dúvida sobre o que fazer a seguir. Uma dor forte na panturrilha esquerda, outra dor, mais fraca, nos rins. Você não é mais aquele.

Então uma idéia lhe ocorre. Você já sabe o que fazer.

Entra no escritório, acende a luminária antiga e toca a remexer nas gavetas que não são abertas há anos. São três gavetas de cada lado da mesa de mogno antiga. A procura só se encerra quando você abre — claro — a última, a terceira à direita, contando de cima para baixo. É a única gaveta que você mantém trancada. Ofegante (há quanto tempo você não se exercita? O dr. Miller havia aconselhado você a fazer ginástica, ou pelo menos caminhar numa esteira), lá vai você até a cozinha, onde os molhos de chaves estão pendurados. Mancando (a panturrilha continua doendo), você volta ao escritório e abre a gaveta.

Dentro dela, apenas um objeto. Uma caixa de veludo negro.

Você pega a caixa como se ela fosse feita de vidro, como se fosse se espatifar à menor pressão de seus dedos. Para você, o que ela contém é uma jóia. Mais importante do que o relógio folheado a ouro que você ganhou ao se aposentar na polícia.

A máscara.

Meio sem se dar conta do que está fazendo, você pega a máscara antiga mas muito bem conservada e a coloca no rosto. No fundo da caixa, bem dobrado, um par de luvas aguarda. Mas não por muito tempo.

Porque agora você já sabe o que vai fazer.

Vai silencioso (como sempre, você continua bom nessas manobras sorrateiras) até o quarto, onde Ellen dorme. Com cautela, para não acordar a esposa, você abre o armário e retira do fundo o único terno que não usa há mais de cinqüenta anos. Veste o traje com cuidado e reverência. Volta ao banheiro e se olha no espelho.

Não ficou mal. Não mesmo.

A aparência, afinal, não é o mais importante. O que vale é o espírito, você pensa, rindo por dentro da piada velha mas que ainda tem lá a sua graça.

Consulta o relógio da cabeceira. Ainda é madrugada. Não vale a pena acordar Ellen. Você volta à sala e torna a se sentar na poltrona. Vai esperar mais um pouco. A panturrilha ainda dói, o braço esquerdo lateja. A nostalgia faz o peito bater mais rápido, como há muito tempo você não sentia. E você se recorda. Recordar é viver.

Lábios que beijou, mãos que afagou.

Rostos que socou, bandidos que matou.

Colegas que admirou, amigos que abraçou.

O peito parece que vai arrebentar de tanta saudade.

Você olha pela janela e decide: só mais um pouquinho de descanso, e depois você irá para o velório do velho. Prestar a última homenagem.

Mas os olhos se fecham sem que você perceba. Sonhos bons, de um tempo que não volta mais. A respiração lentamente se esvai do corpo. O que fica é o corpo. O Espírito se foi.

Central City é apenas um quadrinho na parede. Mas como dói.

Para Will Eisner




 
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