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Por
Octavio Aragão
Uma Sepultura Vazia para a Eternidade
O morto era alto, calvo e sorridente. Poderíamos acrescentar que era desconhecido, mas isso seria adiantar as coisas, e neste mundo, vivemos escravos do relógio.
O agente Daniel V. e o comissário Orlando G., ternos pretos molhados pela chuva que inundava a cidade, eram os únicos presentes ao enterro do velho.
Sem pistas? Orlando estava irritado e com frio. Queria acabar logo com aquilo.
Tudo certo. Esse aí não incomoda mais ninguém. Queimei as últimas revistas antes de vir para cá. Já não existe mais nada que possa ligar esse sujeito a nós ou à Empresa.
Orlando sacou o cachimbo de um bolso interno. Tentou acender o tubo três vezes e acabou desistindo. Dentro do caixão, o morto piscou os olhos. Uma penugem parecia nascer na cabeça lisa.
Queimou aquela máscara ridícula também? perguntou Orlando, já sabendo a resposta.
Daniel desviou o olhar. Jogou o pedaço de pano preto para o companheiro.
Dá pra me explicar o que você pretendia fazer com isso, seu pervertido? - disse Orlando, mascando o cabo do cachimbo.
Pergunta pra tua filha. - sussurrou Daniel.
Orlando suspirou, pensando se mandava o garoto repetir a grosseria e sentava a mão na cara dele ou se deixava passar. Como o morto começava a mexer os dedos, a pele cada vez mais esticada, escolheu a segunda opção.
Daniel coçou o rosto mal escanhoado. Sabia que tinha pisado na bola e precisava quebrar a tensão. Era isso ou correr o risco de ser sacaneado quando voltassem para casa.
Sabe, até que foi engraçado me ver desenhado daquela maneira. O diabo do cara era talentoso. E você, porra, você estava idêntico. Bigodão e tudo!
Orlando G. levantou a cabeça, deixando alguns pingos caírem sobre o rosto. Enxugou a cara com a mão esquerda e estendeu-a para o companheiro, enquanto a direita sumia sob o terno.
Anda, devolve as revistas agora.
Quê? Eu queimei todas elas, não sobrou nenhuma comigo.
Pela primeira vez, os olhos de Orlando focaram a cara de Daniel.
Agora. Ou acabo com você.
Porra nenhuma, Orlando. Você não vai fazer nada. Nós já resolvemos o problema, já eliminamos qualquer possibilidade desse aí nos delatar. Olha em torno, cara! Estamos num cemitério que não existe, numa cidade de mentira! Que custa me deixar ficar com uma revista, uma lembrança inofensiva?
Como Orlando não baixava a mão, Daniel deu um passo atrás, esbarrando o corpanzil de quase dois metros numa das quinas do caixão. O morto abriu a boca com se falasse alguma coisa muito importante. Todos os dentes estavam no lugar.
Isso é porque não era você, não é? - continuou, num tom mais agudo O herói era eu. Ele achou que eu era o mais indicado para ser desenhado como o mocinho da história, o mais charmoso, o detetive. O grande comissário Orlando com inveja de mim!
A arma saiu debaixo do paletó e ficou a dois dedos do nariz de Daniel. Era uma pistola muito grande.
Até poderia ser isso, sim. Mas a verdade é que você tem nas mãos um artefato vindo de uma realidade proibida que vale uma fortuna no mercado negro. Se não me entregar a revista neste segundo, vou não apenas confiscar o objeto, como vou prender você num lugar de onde nunca mais vai sair.
Daniel desistiu. Retirou um envelope pardo de dentro do paletó e entregou a Orlando. A capa da revista mostrava um sujeito de chapéu e máscara enfiado num terno azul todo rasgado, carregando uma beldade loura desmaiada em seus braços musculosos. Atrás e em torno dele, um exército de bandidos espreitava, mas nada parecia esmorecer as feições do mascarado. O rosto, mesmo parcialmente escondido pelo pano negro, era o de Daniel V.
Pronto, taí a revista. Agora abaixa essa merda, vai.
Orlando pegou a revista com a mão livre e guardou-a no bolso sem se preocupar se iria amarrotar a capa ou não. Em seguida, acertou uma bala entre os olhos de Daniel.
Preparou o corpo e o cenário, pensando em como o plano era perfeito. Em seu mundo de origem, o artista havia descoberto tudo. Que todos os mundos possíveis eram controlados por uma única entidade, uma espécie de polícia secreta que decidia quais rumos a humanidade deveria tomar, agindo por intermédio de agentes misteriosos, homens vestindo ternos escuros e com identidades falsas.
Passou a vida desenhando histórias em quadrinhos geniais que, se lidas em determinada ordem, contavam toda a verdade oculta do mundo. Foi considerado o maior artista do gênero de todos os tempos, mas nunca ninguém descobriu o segredo por trás de sua arte seqüencial. Nem mesmo a própria polícia secreta sabia que estava sendo descrita em detalhes semanalmente nas páginas de um jornal de alta circulação e nas revistinhas juvenis. Ninguém sabia, a não ser uma pessoa.
Comissário, é você? disse o homem dentro do caixão, aparentando trinta anos, esfregando os olhos sonolentos O que aconteceu? Quem é esse aí no chão?
Oi, Will. disse Orlando, com um vasto sorriso por baixo dos bigodes - Eu sabia que sairia dessa.
Com o pé, virou o corpo de Daniel para que o outro pudesse ver o rosto.
Meu Deus, ele é a minha cara! - o ressuscitado estava pasmo. Os mesmos cabelos pretos, os lábios retos, os olhos azuis.
Pois é, rapaz, dessa vez o Octopus quase conseguiu. Mas você descobriu o plano a tempo e conseguiu me contactar antes do sonífero que ele lhe deu fazer efeito. Vim o mais rápido que pude e peguei o safado desprevenido, impedindo que desse cabo de você.
Contactei? Eu não lembro de nada... a última coisa que me vem à cabeça é uma cama de hospital, como se eu tivesse sofrido um tipo de operação... - e apalpou o peito, como que procurando um corte, uma incisão.
Orlando riu.
Procure no bolso e vai achar o comunicador especial que liga você a meu escritório. Ainda está tonto, mas logo vai ficar bem. - e certificou-se de que a revista estava bem guardada, enquanto jogava o pano preto na direção do outro.
O mundo precisa de um novo espírito, Will.
E enquanto o jovem artista amarrava a tira negra sobre os olhos, sorrindo como uma criança, o comissário Orlando Guimarães da Intempol acariciava o vasto bigode e imaginava que aquela cidade seria um ótimo lugar para curtir sua aposentadoria.
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