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Constantine # 02

Por Fábio Fernandes

The Great Rock'n Roll Swindle

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Arseholes.

Seus colegas de banda mal chegam ao Rio de Janeiro e qual é a primeira coisa que fazem? Vão direto para a praia. Fucking Pistols' imitators.

Você não. C'mon: punk que é punk honra o preto das roupas que veste e o branco-acinzentado da pele. A simpatia que você tem pelo demônio não chega a ponto de querer ter a cor dele (pelo menos, não o vermelho que o imaginário popular registra como o matiz do capeta), mas você também não fica tão deslumbradinho assim com as praias. As mulheres de tanga já são outra história, mas what the fuck: a man´s got to do what a man´s got to do. Você não vai ficar correndo atrás. O manager da banda já falou que o Brasil é terra de groupies gostosinhas. Então você fica na sua num dos bares da Avenida Atlântica, fumando um cigarro atrás do outro (seu tradicional Silk Cut, você nem sabe como conseguiu driblar a alfândega desta república de bananas e trazer uma caixa) e tomando sua cerveja (uma cerva brasileira, uma tal de Brahma, fraca mas passável), tentando de algum jeito amenizar o calor infernal.

— Não vai aproveitar a praia com os outros? — diz a voz rouca às suas costas. Fat Eddie, o manager, chega suando em bicas, sem camisa, as banhas gelatinosas vermelhas como um tomate. Você tenta não olhar para essa visão dantesca.

— Nah. — é tudo o que você se digna a responder.

— Heh, that´s my Johnny-boy. Acho que você vai gostar do que eu tenho.

— É da pura?

O manager ri.

— No, not that, mate. Fiquei sabendo com o Hélio, o cara do som, que hoje vai rolar um negócio que você gosta. Um tal de kendanblay.

— Como é que é?

— Ah, sei lá como é que se pronuncia isso. É o seguinte: um show de black magic. Vai rolar esta noite, num subúrbio daqui.

Você faz uma careta de ironia.

— Black magic em subúrbio? — ri — Ah, isso é show pra enganar otário. Gente de classe média só transa magia como passatempo. Esse pessoal nunca deve ter sequer ouvido falar no Crowley.

— No Crowley pode ser que não — Fat Eddie responde — mas, quanto a esse papo de classe média em subúrbio, esquece. Isto aqui é América do Sul, não a do Norte.

Fat Eddie tinha razão. O subúrbio do Rio de Janeiro não tem nada a ver com tudo o que você já viu nos cinemas sobre os subúrbios bonitinhos e padronizados dos Estados Unidos.

Não chega a ser feio, mas é pobre. A iluminação fraca dos postes deixa entrever casinhas coloridas mas bem simples (a largura é bem maior que a das casas da classe operária inglesa, mas pelo menos a maioria das casas de lá tem dois andares, ao contrário das brasileiras), homens sem camisa sentados nas portas se abanando ou tomando uma cerveja, junto com suas mulheres — a maioria velhas usando vestidos largos para tentar esconder os peitos caindo no umbigo, mas de vez em quando você vislumbra uma menina com um shortinho de lycra ou jeans e constata que a mulher brasileira é de fato uma das mais bonitas que você já teve a oportunidade de ver.

Seu tesão é interrompido pela voz rouca do Eddie, sentado no banco da frente do fusca, ao lado de Hélio, o iluminador, que dirige. O resto da equipe do Mucous Membrane ficou no hotel, todo mundo gemendo de dor com as queimaduras de primeiro grau provocadas pelo sol escaldante da praia. Fucking idiots.

— Chegamos ao kendanblay! — Fat Eddie grita, forçando uma animação que não está sentindo para ver se empolga você. Arsehole. Hélio ri.

— É candomblé, cara. — o sujeito diz, num misto de inglês e português — Assim, ó: — e, escandindo bem as sílabas — Can — dom — blé. Sacou?

— Yeah, yeah, kandanbleh! — Eddie responde, já perdendo o interesse. Hélio balança a cabeça, desiste de tentar ensinar alguma coisa ao gringo babaca e estaciona o fusca rente ao meio-fio da rua mal iluminada do bairro cujo nome você mal entendeu, uma coisa do tipo Madurira, Madurayra, whatever. Vocês saltam na frente da casa, uma casa quase inteiramente às escuras, com um nicho em cima na entrada com uma lâmpada azul muito fraca, e ladeada por arbustos supercrescidos e malcuidados onde caberiam diversas pessoas prontas para assaltá-los e cobrí-los de porrada. Você fica esperto: será que esse filho da puta do Hélio não está tentando assaltar os gringos otários? Por via das dúvidas, você mete discretamente a mão por dentro da calça e apalpa o soco-inglês malocado na cueca. Fucking brazilians.

Mas nada acontece. O sujeito vai na frente, abrindo caminho por entre o matagal e entra por um corredor a céu aberto ao lado da casa, que não dá para ver da entrada. Você vê uma luz no fim do túnel, uma luz branca forte. Ouve som de tambores. Você se lembra de um filme sobre vodu e começa a achar que se meteu numa furada federal.

O corredor desemboca numa clareira rodeada por muros altos e repleta de gente. O som dos tambores está mais alto, mas você olha ao redor e não consegue ver de onde vem. Você vê umas mulheres todas vestidas de azul e branco, cheias de rendas e com turbantes nas cabeças. Carmens Mirandas africanas, você pensa. A falta de frutas nos turbantes é compensada pelas cores das roupas e da quantidade enorme de colares que cada uma delas leva ao pescoço. Hélio faz um gesto para que esperem onde estão, e vai na direção de uma dessas mulheres. Você acende um cigarro.

— Scusi. — diz uma voz rouca atrás de você, lhe dando um susto violento — Poderia me ceder um cigarro?

— Whaddafuck...? — você se vira bruscamente. O homem à sua frente é alto e corpulento, um pouco acima do peso. Meio careca, com uma grande e espessa barba preta e um par de óculos quadrados grossos com aro de tartaruga. Sorri meio sem graça.

— Sorry, are you British? — ele pergunta com um forte sotaque que você não consegue distinguir, mas que fica claro que não é brasileiro — I just wanted to borrow a cigarette. I forgot my cigars in the hotel.

Você olha o sujeito meio cabreiro, mas ele parece mais um estrangeiro perdido ali junto com você e o Fat Eddie. Na pior das hipóteses, mais um otário prestes a ser depenado. Não custa ser solidário com um colega de miséria. Sem dizer uma palavra sequer, você tira o maço de Silk Cut do bolso da calça justa e oferece um cigarro amassado para o sujeito, que aceita com um "thank you" com sotaque. O sujeito acende o cigarro, puxa a fumaça com força, solta a fumaça e aí estende a mão para cumprimentá-lo.

— I'm from Italy. — o homem se apresenta — My name is Umberto. — você só tem uma palavra para dizer ao sujeito:

— Ecco!

O homem fica surpreso.

— Mas você me conhece, catzo?

Você olha para o sujeito, estranhando.

— I don't know you, mate. It's the only fucking word in Italian I happen to know. — você responde. Caralho, uma cerveja faz falta neste calor fodido do capeta. O italiano olha para um ponto atrás de você e dá um sorriso meio torto.

— Já vai começar. — Umberto diz em inglês.

— Começar o quê? O vodu? Ou... — ele custa a achar a palavra. — Yeah, I know it: santeria!

O italiano balança a cabeça, meio incomodado com a sua ignorância.

— Não, santería é como se denomina o conjunto de rituais religiosos afrocubanos. O equivalente disso no Brasil é o candomblé. Existem algumas semelhanças em termos de simbologia. Mas os rituais são bem diferentes.

— Ah, OK. — "whatever", você pensa. Você quer mais é ver se isso é verdade ou se é mais daquela psychobullshit de que os americanos tanto gostam.

Você só não estava preparado para o que veio em seguida.

Num canto do terreiro — uma quadra coberta do tamanho de um ginásio de basquete de escola, só que com um piso engraçado, todo feito de caquinhos de azulejos coloridos — você finalmente percebe os tambores. São três, de diferentes alturas e diâmetros. Os homens que os tocam vestem calças brancas, mas não usam camisas nem calçados. O número de colares que usam, atravessados nos ombros como cartucheiras, é quase tão grande quanto o das mulheres de turbante. Hélio aparece e faz um sinal para que cheguem mais perto.

— O Pai Jacinto vai sair daqui a pouco. Fiquem por aqui que a gira já vai começar.

Você dá uma tragada no seu cigarro. O italiano joga o dele no chão e o apaga com a sola do sapato. Ele faz sinal para que você faça o mesmo. Você olha ao redor. Ninguém está fumando no recinto. "What the hell", você pensa, e imita o gesto do italiano.

— É questão de respeito. — o italiano diz em inglês ao seu ouvido direito — A entidade que o pai-de-santo recebe fuma e bebe. Se ela oferecer alguma coisa a você, aceite.

— E por que eu deveria? — você pergunta, insolente. Você até que está curioso, mas não quer admitir.

O italiano dá de ombros.

— Você não é obrigado. — ele diz — O homem vai perguntar a você se você quer. Mas se aceitar, ele passa a ver você com simpatia.

À sua esquerda, Hélio pede silêncio. O ritual vai começar.

As mulheres de vestidos rodados e turbantes executam uma dança circular no espaço do terreiro. Ao fundo, a batida da freqüência dos tambores (atabaques, o italiano explica sem que você lhe peça) aumenta. A dança começa a ficar mais frenética. Você acha tudo isso interessante, bem diferente dos rituais pseudosatânicos das santerias e da black magic que você conheceu até hoje. Você não consegue entender o sentido do que está acontecendo, mas que não parece ser nada ruim, isso não parece mesmo.

Ao lado dos tambores, subitamente aparece um homem (e só então você repara que, ao lado dos tocadores de atabaque, havia uma porta mal coberta por uma cortina feita de conchas e cordas). Ele veste branco e usa colares de diversas cores. É um negro de meia-idade, com alguns poucos cabelos brancos, mas alto, magro e de porte altivo. Vai se aproximando, com passos arrastados e ritmados, um pouco coreografados, de uma cadeira de vime com espaldar alto que fica no centro da parede de onde saiu.

Mais cantos e danças. Outras pessoas se juntam ao grupo das mulheres de turbante. Você sente vontade de perguntar ao italiano intrometido o que está acontecendo, mas agora ele está ocupado demais fazendo anotações numa caderneta e olhando para tudo ao seu redor, completamente absorvido. Você olha para Fat Eddie. O gordo sua e treme. Está vermelho como se tivesse comido muita pimenta. "The motherfucker is afraid", você pensa e ri consigo mesmo. Diabos, que vontade de fumar.

Depois de um longo tempo (você não trouxe relógio nem conseguiu ver ali ninguém que tivesse algum, mas suspeita que pelo menos uns quarenta minutos se passaram), a dança pára. O homem se levanta de sua cadeira e contorna por dentro todo o terreiro, fumando um charuto grande e grosso. Ele pára diante de cada pessoa, faz um gesto com a mão que segura o charuto. De vez em quando solta uma baforada na cara de uma pessoa, ou bate com os ombros nos ombros dos outros, como se fosse um abraço sem usar as mãos.

Você já está começando a ficar de saco cheio. Está achando tudo isso uma coisa muito sem sal, completamente sem graça. Onde estão os rituais de magick dos quais você tanto ouviu falar?

"Ah, que se foda", você pensa. Mete a mão no bolso e acende um Silk Cut. Pelo canto do olho, você percebe que Hélio está olhando para você com ar de desaprovação. Mas também não faz nenhum gesto para impedí-lo. Você dá uma gostosa tragada e aguarda a sua vez.

Que chega logo em seguida. Quando você menos espera, o homem já está na sua cara. Olhando fixo para você. Ele não faz nada. Não ergue a mão em sua direção para fazer um daqueles gestos, não toca seus ombros com os dele, sequer lhe dirige a palavra. Ele simplesmente olha.

E solta uma baforada do charuto na sua cara.

Você não está mais lá.
Você só viu tantas cores assim quando tomou ácido pela primeira vez. Tudo à sua volta é um turbilhão de cores.
Cachoeiras e cascatas de coloridos sutis.
E esse lindo céu azul e anil,
emoldura,
aquarela — o quê?
Uma visão do inferno que se abre à sua frente.

Você vê coisas.

Uma criatura enorme, toda verde, feita de folhas e raízes, alguma coisa vegetal viva e consciente. Você sente cheiro de terra molhada. E então você olha ao redor.

You see dead people.

Você vê muita gente, multidões, pessoas que você ainda não conhece, mas vai conhecer. Perto do seu ouvido, uma voz rouca e irônica começa a descrever para você (com um inglês perfeito, embora você pense perceber um sotaque estranho, talvez africano) tudo aquilo que você vai enfrentar nos próximos anos. A voz lhe desfia um rol de tragédias digno de Homero, de Shakespeare, de Dante. E isso antes de você morrer. A voz dá uma risada fina no seu ouvido e diz que, se fosse você, parava de fumar.

Ao longe, você vê três criaturas que se aproximam rapidamente. São demônios. Os três olham para você com um sentimento inconfundível em qualquer lugar. Ódio. Você não entende por quê, mas sabe que esse ódio é pessoal. E que você vai para o inferno quando morrer. E eles vão estar esperando.

Um flash de luz vermelha muito brilhante.

Você abre os olhos e sente cheiro de vômito. O chão de caquinhos de ladrilho é duro e frio.

— Impressionante! — diz o italiano, ajudando você a se levantar — Já vi muitos estrangeiros tentarem, mas você é o primeiro que vejo que realmente recebeu uma entidade.

— What happened, mate? Are you okay? — a voz de Fat Eddie vem de algum lugar atrás de sua cabeça. E então ele e o brasileiro Hélio estão à sua frente, ajudando você a se levantar.

Você não responde. Ainda não consegue assimilar o que aconteceu. Seu corpo treme. Você tem vergonha de estar tão fragilizado na presença de outras pessoas.

O italiano empurra em sua mão um pedaço de papel. Você ainda está zonzo, mas percebe que é um cartão de visita.

— Se quiser conversar sobre isso, me procure. Moro na Itália mas estou sempre viajando pela Europa. É provável que ainda este ano eu vá para Londres participar de um congresso. Me procure.

Você não diz nada. Apavorado, Fat Eddie puxa você para fora dali o mais rápido que pode.

Arseholes.

O show do Mucous Membrane foi um fracasso. Dois membros da banda com insolação e o vocalista completamente bêbado fizeram um show de merda. O vocalista é você. Não havia a menor condição de permanecer sóbrio depois daquele incidente.

No dia seguinte ao show, seus colegas dormindo até tarde, você volta ao mesmo bar de dois dias atrás. Recusa os avanços dos vendedores de badulaques e de duas putas que queriam se sentar na sua mesa.

Você só quer ficar na sua, fumando um cigarro atrás do outro (o Silk Cut acabou, você foi obrigado a comprar um cigarro nacional, um tal de Continental, bem mais fraco) e tomando sua cerveja (agora você experimenta uma Antarctica, um pouco melhor que a outra). E continua tentando de algum jeito amenizar o calor infernal. Tanto no corpo quanto na alma.

Arseholes.




 
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