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Por
Octavio Aragão
Pai Nosso
Eu não sou um monstro, mas o resto do mundo é.
As placas brancas e afiadas em suas cavidades bucais atestam a agressividade latente da espécie dominante. As extremidades balouçantes nas pontas dos extensores são manipuladores delicados, mas fortes em sua ânsia de travar contato.
Não, não. Todos afastados ou serei obrigado a usar o desfibrilador! Os aparelhos de captação luminescente variam as cores, entre o azul, verde e castanho, passando pelo totalmente negro e por raros tons amarelados.
Olhos curiosos e lacrimejantes, com uma sutil camada líquida na superfície.
Dois. Que fixação em dualidade. Toda sua fisiologia é dual: aulscutadores, orifícios respiradores, órgãos táteis e membros para locomoção. Não sei como não têm duas cabeças, mas vai ver o cérebro, dentro da caixa craniana, é duplo.
Aponto o tubo para frente e me dirijo de volta ao local de origem. Ao menos disso eu lembro. Se ao menos meu nome também voltasse...
Vai parar agora com a palhaçada ou vou ser obrigado a apelar? diz a criatura à minha frente, impedindo a passagem. De sua abertura bucal pende um pequeno cilindro branco fumegante.
Decido investir, mas tropeço e caio no chão, a arma voa num arco e acaba batendo nos pés do inimigo. Imediatamente, empunho um embaralhador neuronal e miro entre os olhos da coisa, apenas para ver o aparelho explodir sozinho em minhas mãos, chamuscando meus dedos.
Companheiro, você está abusando da sorte. fala o aborto ambulante Se continuar, vai acabar se machucando seriamente.
Notei que, enquanto já estou quase deitado no chão, graças ao peso de meu próprio corpo, subitamente ampliado, o monte de lixo sobre pernas não moveu um músculo.
Arranho o solo e luto para vencer a gravidade ainda pensando em avançar. Minhas mãos derrapam e bato com o queixo no chão, quebrando dois dentes. O estupor se limita a suspirar enquanto solta uma baforada fétida.
Procuro a faca de aço molibdênio que trago na perna esquerda e pressiono o botão que solta a lâmina. Ela emperra.
Eu empurro o mecanismo com força e, depois de um estalo, o punho da faca racha, ferindo a palma de minha mão direita. Agora não consigo segurar mais nada.
O estrume envolto num sobretudo cuja cor é indecifrável está de olhos fechados, aparentemente alheio à minha ridícula condição.
Tomo uma decisão enquanto me arrasto na sarjeta: vou matar esse filho da puta. Vou partir cada uma das costelas, arrancar o coração e mastigar na frente dos olhos baços dele enquanto ainda estiver dando a última baforada.
A baba, minha baba, forma uma poça vermelha.
Chega, Chas, expulsa essa bosta de demônio antes que tua mulher apareça, vai. Já vai ser uma merda explicar pra ela como você ficou desse jeito, ainda mais se você chegar em casa com bafo de enxofre.
Tento ignorar o ruído da besta e luto para deslocar o corpo. O sangue que escorre não ajuda.
Ah, caceta, não vai ajudar, né? Então tá bom. Escuta aqui, seu demônio de quinta, se prepara porque eu vou chutar esse teu rabo até as portas da casa do teu pai, aquele corno!
O animal sacode as mãos, sussurra cânticos e sinto dores horríveis, calafrios que vêm de fora para dentro e terminam em convulsões. A visão fica turva e os tímpanos explodem enquando sinto o chão ceder sob meu peso e o entorno se fechar sobre a cabeça.
O torvelinho é quente, úmido e tem cheiro de nostalgia. Fezes, urina e esperma.
Depois de muita dor e prazer, finalmente recordo tudo: minha missão, meu alvo e minha falta.
Agora é tarde.
A casa de meu pai tem muitas portas e estou diante da principal, aquela feita de osso. Serei punido alegremente por minha amnésia induzida, mas ao menos voltei com um prêmio, a marca da voz do verme que pronunciou meu nome.
É verdade que nomes têm poder, mas até isso é uma faca de dois gumes.
Uma vez pronunciado, mesmo que com efeito de exorcismo, um elo indissolúvel se produz entre boca e ouvido, algo parecido com o resíduo psíquico eterno que existe entre amantes carnais. Assim como todo intercurso, também toda conexão inter-planos ecoa para sempre.
Sou pequeno ainda, diante da vastidão dos domínios de meu pai, mas tenho tempo. E agora, eu sei onde e quando o Rei da Escória Humana se encontra.
Eu e ele somos irmãos e eu gosto de família grande.
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