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Constantine # 03

Por Marcelo Augusto Galvão

23 Craddock Lane

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John Constantine não tinha dúvidas de que Craddock Lane era uma rua assombrada. Não que isso fosse novidade em Londres, uma cidade tecida por ruas, vielas, becos e avenidas cujos imóveis — muitos destruídos e reerguidos após o grande incêndio de 1666 ou a blitz de 1940/41 — abrigavam as mais diversas assombrações.

Uma dúzia de estreitos sobrados geminados — dois quartos, sala, cozinha, banheiro e um quintal minúsculo — construídos no período entreguerras erguia-se na curta extensão da rua. Os tijolos, escuros depois de tanto tempo submetidos ao smog e ao tempo londrino, davam uma aparência tétrica ao lugar, como esquifes colocados um ao lado do outro. A lua cheia que brilhava não ajudava a melhorar o aspecto fúnebre da viela, situado em uma área ao sul do Tâmisa. A rua acabava em uma cerca viva que fazia limite com Craddock Park, uma das dezenas de espaços verdes na cidade.

— Tô falando, John, o lugar é esquisito. — Chas Chandler dissera há pouco mais de uma hora, quando bebia com Constantine em um pub — Depois de tanto tempo andando do teu lado, acho que desenvolvi uma espécie de sexto sentido, sabe, meio que por osmose.

Constantine riu com a afirmação do amigo. Chas continuou.

— É sério. Tenho medo daquele lugar, tô ali só porque a grana tá curta em casa. — Chas era motorista de táxi e trabalhava numa companhia pequena localizada próxima a Craddock Lane — Aquele lugar me dá arrepios, principalmente depois que eu vi aquela... coisa.

— Você tá falando do quê, afinal de contas? — Constantine perguntou, retirando o celofane de um maço de Silk Cut.

Chas entornou o resto da cerveja no copo em um só gole, como se isto ajudasse a criar coragem, e começou a falar. Primeiro, foram os restos ensangüentados de pássaros, esquilos e gatos que ele achou no decorrer da semana em Craddock Park. Depois, os uivos agudos e compridos que ele e os colegas ouviam pela noite; tinham certeza que vinham da viela, mais precisamente do número 23.

Foi então que Chas encontrou o cadáver de Charles.

— Charles? — Constantine curvou-se sobre a mesa para melhor encarar seu amigo — Algum motorista?

— Oh, não. Ele era um vira-lata que a gente adotou como mascote da firma. Meio bobão, ficava pulando de um lado pro outro, correndo atrás de borboleta, esse tipo de coisa. E tinha uma orelhas bem grandes, aí a gente decidiu batizar ele em homenagem ao príncipe.

Charles fora encontrado no interior do prédio da companhia, na manhã do dia anterior. A maior parte das suas vísceras espalhava-se pelo lugar.

— Foi como se ele tivesse sido atropelado por um trem. — disse Chas, o álcool tornando-o mais emotivo a ponto dos olhos umedecerem-se — Não apenas uma vez, mas duas, três, quatro vezes... ninguém merecia aquilo.

Ele limpou as lágrimas na manga do casaco e pigarreou, antes de continuar:

— Não tinha como alguém entrar lá e fazer isso com ele. Mas ontem à noite é que eu vi como aquela rua é assustadora.

E Chas contou o que vira. John Constantine ouviu tudo com atenção e quando o dono do pub tocou o sino para indicar que o lugar fecharia em cinco minutos, o mago já decidira o que faria.

Pois aquela era a última noite de lua cheia. Constantine sabia que não teria outra oportunidade.

Agora, parado ali no início da viela, percebia que Chas estava certo. Havia algo no ar, e não era apenas a névoa que encobria a cidade naquela fria noite de outono. Levantando a gola do sobretudo, Constantine sentiu que a atmosfera da rua estava impregnada por ódio, terror e crueldade. E o ponto de origem era o sobrado número 23.

John Constantine verificou o relógio; faltavam vinte minutos para a meia-noite. Ele acendeu mais um Silk Cut e ficou esperando.

Barbara também esperava, mas encolhida sob o cobertor de um dos quartos do número 23. Uma mistura de raiva, repugnância e terror era o que experimentava naquele momento; algo que conhecia muito bem, ainda que tivesse apenas dez anos de idade. Ela faria de tudo para que aquela mescla imunda nunca mais maculasse sua vida.

Olhou para a outra cama que ocupava o quarto, decorado com temas infantis. A cama estava vazia e Barbara sentiu algo apertar-se em volta do seu coração. Também reconhecia aquele sentimento: era saudade.

Escutou passos no corredor. A réstia de luz que entrava pelo vão da porta fechada desapareceu; alguém estava defronte dela. Uma faca gelada feita de medo penetrou nas suas entranhas quando ela viu a maçaneta girar.

A porta abriu-se e a garota escutou um murmúrio.

— Baaarbie...

Ela engoliu em seco. A voz continuou:

— Onde está a filhinha preferida do papai?

A espera de John Constantine foi recompensada assim que a lua se escondeu atrás de nuvens pesadas. Uma silhueta esguia surgiu no fim da rua sem saída, no limite com o parque, e cortou a névoa que pairava sobre a cerca viva.

De longe, alguém até podia pensar que se tratava de um cão magricela, talvez um dogue alemão desnutrido, como acontecera com Chas na noite anterior. Mas ao aproximar-se, o observador mudaria de opinião.

— As patas lembram mais as de um leão ou um tigre, com garras que parecem navalhas. — Chas dissera no pub, o quinto copo de cerveja na mão — E o pêlo dele? É todo cinza, mas parece que foi remendado em cima do corpo ossudo.

Mas isto não era nada se comparado ao rosto do animal. Olhos assimétricos de um amarelo purulento brilhavam no crânio coberto de úlceras de variados tamanhos; a boca enorme abrigava dezenas de dentes pontiagudos que combinariam melhor na mandíbula de um dinossauro.

E também havia o odor.

— Carne estragada na geladeira. Foi nisso que pensei na hora que senti o fedor. E ele também cheira que nem cachorro que tomou chuva.

John Constantine jogou a bituca do cigarro e olhou pra o relógio no momento em que a silhueta atravessou a cerca-viva: meia-noite em ponto. Constantine tinha que reconhecer que, em matéria de cumprir acordos, demônios eram tão pontuais quanto os antigos trens ingleses.

Mesmo enfiada sob o cobertor, Barbara podia sentir o hálito alcoolizado do pai. Aquilo sempre acontecia quando Connor, após sair do trabalho, passava no pub mais próximo e bebia ao menos meia dúzia de cervejas.

Barbara enojava-se com aquele cheiro, mas nada se comparava ao do suor azedo impregnado no cinto de couro e no jeans surrado do pai. Eram os odores que ela associaria para sempre com aquelas noites de terror. Assim como o som do tilintar do cinto sendo desafivelado, do zíper do jeans abrindo-se e do fôlego acelerado de Connor.

Barbara fechou os olhos e agarrou algo debaixo do travesseiro cor-de-rosa. Como havia aprendido, focalizou sentimentos e lembranças negativas naquele objeto pequeno que levava na palma da mão. Chorou ao recordar-se do contato dos dedos calosos de Connor; sentiu o rosto quente com o tapa seco desferido por Cindy, sua mãe, quando contou o que o pai fazia naquelas noites com ela e com Kenny, seu irmão um ano mais velho, e a mãe a chamou de "vagabunda mentirosa"; viu a imagem de Kenny, lágrimas rolando pelo rosto macilento, segurando com asco o pênis entre as lâminas frias de uma tesoura.

A menina sabia que, se queria salvar-se, deveria procurar ajuda sozinha. Cerrando com força o punho no qual segurava o objeto, começou a sussurrar frases numa língua que nenhum dos habitantes do sobrado conhecia. Logo, seu amigo chegaria para ajudá-la.

Constantine reconheceu a criatura assim que Chas a descreveu no pub. Ela não tinha um nome exato; no decorrer da história, fora referida como a "fera", "besta", "monstro" ou "demônio", conforme a localidade em que aparecia: Yorkshire, Tedworth, Norfolk, Gévaudan. Era uma lenda que há muito tempo fazia parte do folclore inglês e, como toda lenda, tinha um pé na realidade.

Mas se dependesse de Constantine, não haveria hoje uma "Fera de Craddock Lane" ou algo assim. Pois ele passara os últimos vinte minutos elaborando, no trecho da viela em frente ao número 23, uma magia que a aprisionaria e mandaria de volta para o canil infernal de onde saíra.

A criatura desceu a viela, vagarosamente; estava a poucos passos da armadilha. Constantine, encostado em uma árvore, a observava. De repente, ela estancou, levantou o focinho e aprumou as orelhas: farejava o fedor acre do desespero e escutava a melodia guinchante do medo que preenchiam o ar noturno.

E ao invés de avançar na direção do sobrado, a fera retrocedeu.

— Mas o que ele tá fazendo... — Constantine viu que agora o demônio retornava, correndo como se tomasse impulso.

Para saltar sobre a armadilha do mago, aterrissar a salvo em frente à porta do número 23 e, com um único golpe da sua pata, estilhaçá-la para invadir o lugar.

Constantine cerrou os dentes; sua armadilha fora detectada e falhara.

Nesse instante, o mago escutou o grito.

O barulho da porta sendo destruída fez Connor ficar alerta, mas nada no mundo podia prepará-lo para a visão da fera horrenda entrando no quarto, atendendo o chamado daquela que o invocara. Barbara, agora sentada na cama, viu que todo o sofrimento acabaria logo.

Foi quando a criatura moveu a cabeça, examinando com olhos amarelos os dois ocupantes do cômodo.

Naquele segundo, a menina lembrou-se da sensação desagradável que tinha quando, como goleira do time de futebol da escola, pensava ter apanhado a bola jogada na sua direção, apenas para vê-la escapulir e saltar de suas mãos, fora de controle.

Fora de controle. Eram as palavra que surgiram à sua frente ao ver seu amigo lamber os lábios com uma língua comprida e brilhante de saliva.

— Nem pense nisso, Cérbero fajuto.

A fera voltou-se para a voz que vinha do corredor. John Constantine escorava-se no umbral do quarto, o fôlego curto depois de correr, entrar no sobrado pela porta estilhaçada e subir de três em três degraus a escada que levava ao corredor decorado com papel de parede azul claro. No final dele, havia duas portas, uma defronte da outra. O cheiro pútrido descrito por Chas exalava da porta à esquerda.

O demônio encarou Constantine. Este fez o mesmo com firmeza; era preciso manter a pose, mesmo que seu plano houvesse fracassado. Mas por trás do ar blasé, o mago tentava desesperadamente improvisar algo para ganhar tempo. A mandíbula da fera se estendeu, mostrando fileiras de dentes cor de zinabre, e Constantine duvidou que ele estivesse bocejando.

— O que está acontecendo aqui? — uma voz feminina soou atrás do mago. Uma mulher de camisola surgira na outra porta do corredor; seus olhos azuis, pálidos como a parede do corredor, fixaram-se na criatura. De pronto, percebeu que estava em perigo. Seu instinto a fez dar o primeiro passo para fugir.

O movimento brusco chamou a atenção do demônio. Com um rosnado, ele pulou na direção do corredor, como se Constantine não existisse. O mago só teve tempo de abaixar-se, jogando-se para dentro do quarto; sentiu as patas da fera passarem por cima de seu sobretudo.

O demônio prensou a mulher no canto do corredor. Os gritos de desespero dela misturavam-se aos dos ocupantes aterrorizados do quarto, em uma cacofonia estridente. Constantine, ainda no chão, sentiu que toda a repugnância, ódio e crueldade que havia notado do lado de fora estavam concentrados ali. Verificou em volta: uma menina de olhos azuis, loira e com sardas, encontrava-se em uma das camas; perto dela, um adulto, as calças arriadas na altura do joelho, fitava a cena mórbida do corredor. Não por muito tempo, pois, com um gemido, desabou no chão, inconsciente.

Constantine levantou-se e deparou-se com o olhar suplicante e culpado da menina. Ele havia encontrado a origem de todo aquele caos.

Os gritos de agonia no corredor foram substituídos pelo som de carne sendo estraçalhada. Havia um lado bom naquilo, Constantine concluiu: enquanto a fera se entretia com a mulher, ele poderia ganhar tempo para talvez improvisar algo.

Ele aproximou-se da garota e perguntou-lhe o nome.

— Por que você o chamou, Barbara? — Constantine disse. A menina ficou calada e Constantine, vendo o pavor estampado no rosto pueril, virou-se para o homem loiro e com sardas caído, e compreendeu tudo.

— Merda. — sussurrou e voltou-se para Barbara — Esquece o que eu disse. Me diz o que você usou para se comunicar com ele, para chamá-lo, tá bom? Foi um tabuleiro ouija?

— N-não... — Barbara apontou para o armário atrás de Constantine. Na prateleira superior encontravam-se um estojo de giz de cera, lápis de cor, algumas bonecas, carrinhos e jogos populares de tabuleiro: Ludo, Damas, Detetive e Banco Imobiliário.

E na caixa desse último ele viu uma gota de sangue ressecada.

— Oh, não... — Constantine abriu a caixa e afastou os componentes do jogo: notas coloridas de dinheiro, miniaturas de casas e hotéis, o maço de cartas amarelas Sorte ou Revés ("Você ganhou na loteria", "Vá para a Prisão", "Sua ações subiram", etc.), até encontrar o tabuleiro. Mais gotas de sangue espalhavam-se pela superfície. Constantine observou a mão da menina e encontrou o que procurava: um curativo no dedo mínimo.

O mago sabia que existiam versões conflitantes sobre a invenção daquele popular jogo. A mais conhecida era de que havia sido inventado por um pai de família durante a Depressão, salvando-o da miséria; outra, de que a versão dele não passava de uma melhoria feita em um jogo criado por uma economista no começo do século passado.

Mas John Constantine também conhecia uma outra versão para a história. Um boato dizia que o tabuleiro fora criado ali mesmo na Inglaterra, no século XVII, por um arquiteto, estudioso do ocultismo, com o objetivo de comunicar-se com mortos e criaturas sobrenaturais. E fora isso que ele fizera, ao barganhar com um demônio em troca de riqueza e fama; cada logradouro no tabuleiro representaria o local de uma de suas magníficas obras na cidade, todas erguidas com ajuda sobrenatural.

E assim o arquiteto viveu no meio do luxo por décadas, até que o demônio veio cobrar a parte dele no acordo. O homem, que havia tornado-se um especialista em ciências ocultas, pensou que podia derrotar a criatura.

Estava errado, é claro. Não só sua alma fora arrebatada diretamente para o inferno, como todos os edifícios, casas e praças por ele idealizados foram destruídos pelo incêndio que consumiu Londres em setembro de 1666. Seu tabuleiro ficaria esquecido por séculos, até ser redescoberto e ganhar uma roupagem nova como um brinquedo. Seu propósito original, no entanto, permanecia.

— Como você descobriu sobre — o mago mostrou o tabuleiro — isso?

— Eu achei na internet.

Faz sentido, Constantine pensou. Se existe instrução de como construir uma bomba em casa, por que não uma para criar seu próprio demônio de estimação? Até imaginava a cena: o demônio sendo invocado na primeira noite de lua cheia daquele mês, aparecendo em uma forma agradável para a menina, provavelmente na de um filhote de cão, fofinho, bonitinho.

E faminto. Mas era um cachorrinho diferente, pois não se alimentava de leite. E assim, durante aquela semana, a menininha de olhos azuis e sardas no rosto acordava na madrugada para encontrar seu bichinho no quintal, acolhê-lo nos braços e amamentá-lo com o sangue do dedo mindinho.

Aquilo não era suficiente para um demônio na fase de crescimento, Constantine bem sabia. Daí os restos dos esquilos, gatos e pássaros no parque e, é claro, do pobre Charles.

O som da criatura dilacerando a mulher interrompeu os pensamentos de Constantine. Voltou-se para Barbara:

— Quero que escute com muita atenção o que vou dizer, pois a gente não tem muito tempo. — a garota fez que sim com a cabeça — A única maneira de se livrar desse bicho é usando esse tabuleiro aqui, mas eu preciso de mais uma coisa, algo que você usou para chamá-lo. Sabe do que estou falando?

Ela balançou a cabeça mais uma vez e estendeu a mão. Constantine reconheceu o objeto: era um marcador de plástico, parte integrante do jogo.

— O Kenny fala que isso dá sorte pra ele, sempre vence quando usa esse marcador. — Barbara limpou uma lágrima — Kenneth é o meu irmão. Ele não mora aqui desde que fugiu pra casa da minha avó.

O barulho no corredor diminuiu, indicando que o festim acabava. Constantine abriu o tabuleiro no chão. Pegou um giz de cera no estojo e cinco casinhas verdes; estas marcariam as pontas do pentagrama que o mago desenhava com o giz sobre o tabuleiro. Colocou uma casa sobre King's Cross Station, outra em Liverpool Street Station, e mais uma em Marylebone Station; as duas restantes ficaram nos cantos que representavam a Prisão e a Parada Livre.

Um rosnado ecoou no andar superior. O tempo havia se esgotado.

O mago posicionou o amuleto de Kenny no meio do tabuleiro. Trouxe Barbara para seu lado e pediu-lhe que usasse as mesmas frases que aprendera para chamar a criatura.

— Vai dar tudo certo. Confie em mim. — o mago assegurou, esperando que a menina não notasse suas mãos trêmulas no bolso.

O chão agitou-se. Barbara fechou os olhos, concentrando-se em pronunciar as palavras que havia decorado semanas atrás. John Constantine, ao seu lado, apenas observava.

O hálito pútrido e quente alcançou os dois. A fera, sangue humano manchando sua fronte e lábios, os encarava da entrada do quarto, a boca aberta como um sorriso. Barbara tremia, enquanto lembranças ruins cruzavam sua mente: Kenny, as lâminas da tesoura, sangue; o cheiro do pai, seu gosto, as mãos calosas; o tapa da mãe, a humilhação, os gritos dela no corredor.

A criatura avançava confiante, deliciando-se com os sentimentos que a menina irradiava.

Foi quando seus olhos assimétricos viram o tabuleiro. Um brilho pálido surgiu no centro do objeto, tornando-se cada vez mais forte até formar um torvelinho. O demônio ganiu, seu corpo esguio sendo atraído pelo tabuleiro; as garras rasgavam o tapete enquanto tentava inutilmente firmar-se em algo.

O brilho aumentou, tornando-se insuportável; a luz atravessava as pálpebras fechadas de Constantine. Ouviu estalos dos ossos da fera sendo moídos, a carne podre rasgando-se e seu uivo agonizante.

Em menos de dez segundos, o caos acabou. O cheiro do monstro sumira, sendo substituído pelo do tabuleiro em chamas.

Barbara chorava. Constantine aproximou-se dela, segurando-a pelos ombros para dizer que tudo acabara bem. Os olhos dela arregalaram-se de pavor e ela retraiu-se ao toque do mago. Cerrando os dentes com força, Constantine deu-se conta do sofrimento que se enroscava na alma da menina.

Nem tudo acabara bem.

Connor recobrou a consciência vagarosamente. A primeira coisa que percebeu é que estava no quarto dos filhos, a segunda que seus jeans estavam abaixados. Imediatamente, lembrou-se do que viera fazer ali. Verificou em volta, mas não viu Barbara. Andou para fora do cômodo, enquanto tentava abotoar as calças.

Então viu a esposa espalhada pelo papel de parede anteriormente azul. Seu estômago revirou-se e algo azedo subiu-lhe pela garganta. Só teve tempo de correr para o banheiro e curvar-se no vaso sanitário.

— Que sujeira, cara.

Connor virou-se na direção da voz. Parado na entrada do banheiro, estava o homem de sobretudo que vira junto com o cão.

— O-o que aconteceu aqui? — Connor conseguiu dizer, o gosto azedo na boca — Onde está Barbara?

Constantine puxou um cigarro do bolso.

— Ela está lá na sala. Em estado de choque, mas viva. — ele acendeu o cigarro — Pena que não podemos dizer o mesmo de Kenny.

O homem sardento apoiou-se na borda do vaso sanitário, tentando levantar-se. Suas calças, ainda não abotoadas por completo, arriaram mais uma vez.

— N-não sei do que está falando...

— Você e sua esposa disseram para todos que o garoto havia fugido para a casa da avó. — Constantine puxou uma longa tragada do Silk Cut — Mas aquela cova rasa no quintal me disse outra coisa.

— V-você não sabe o que aconteceu! — os olhos de Connor arregalaram-se — Nós não queríamos que as pessoas soubessem que ele se suicidou e por isso...

— Depressão, baixa-estima e tendências suicidas são comuns entre crianças vítimas de abuso. Enterraram o corpo, para não chamar atenção da polícia, que poderia descobrir seus outros segredinhos. Como aquelas fotos da câmera digital que encontrei no teu quarto.

— Não... — o homem correu as mãos pelos cabelos — ...você entendeu tudo errado. Fiz aquilo porque as crianças, elas gostam de fazer aquilo, não entende?

Constantine nada disse. Com o cigarro pendendo frouxamente dos lábios, meteu a mão no bolso do sobretudo.

— Barbie sempre com aquelas roupas curtas e justas... e Kenny andando por aí seminu... eles queriam... eu sei que queriam aquilo. Alguém tem que entender isso! — ele encarou Constantine e recordou-se do cão podre — Eu não quero parar no inferno por causa disso!

— Inferno? — Constantine sorriu maliciosamente; do bolso do sobretudo, tirou um maço de pequenas cartas amarelas, que começou a embaralhar — Já estive por lá e é um lugar muito bom pra pedófilos como você.

Connor engoliu em seco. O mago continuou:

— Seu inferno é aqui mesmo, cara. — e flexionou o maço, as cartas amarelas voando pelo cômodo e chovendo sobre Connor.

Constantine deu um passo para trás, as mãos de volta aos bolsos. A porta do banheiro fechou-se com um som seco. Connor levantou-se, cambaleante, e girou a maçaneta. Ela não se moveu nem um milímetro.

Um uivo estridente chegou ao seus ouvidos.

— Não! — ele gritou em desespero — Me deixe sair daqui, por favor!

Foi quando olhou para as cartas espalhadas pelo tapete do banheiro e as reconheceu: eram de um popular jogo de tabuleiro que brincara quando criança. Pegou uma das cartas e leu seu texto. Alcançou uma ao lado dessa, depois outra e mais uma e viu que todos tinham o mesmo texto.

"Vá para a Prisão" era o que estava escrito em todas elas. A voz do homem de sobretudo ecoou na sua mente: "Seu inferno é aqui mesmo".

O uivo da sirene da polícia era cada vez mais próximo.




 
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