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Batman / Demolidor - Do Coração das Trevas # 02

Por Conrad Pichler

Do Coração das Trevas
Parte II

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— Foi o golpe perfeito. Eu nunca ouvi Layla/Kyle falar sobre dinheiro, papéis, jóias. Ela só falava de nós. Vivíamos sem prestar contas um para o outro. Percebo hoje que fui o desafio da vida dela, alguém que a amava e que a perseguia. Ela foi meu desafio também, confesso, era alguém por quem tive a sensação de apego, mas que mantive distante... ou seja, que esteve tão distante quanto próxima. — o velho Wayne sorri malicioso para Murdock — No fim, fiquei apenas com meia dúzia de pequenas propriedades, que fui obrigado a vender para pagar outras dívidas feitas por Kyle. Percebi que os acionistas da Wayne Corp. acobertaram a venda das minhas ações, mas não havia provas. O pior foi a má fama que me precedia na polícia. Foi difícil explicar o "Nighthawks". No fim, eles me forçaram a sair. Se eu tinha dúvidas, quanto ao meu papel de instrumento da justiça, Kyle pareceu resolver todas elas. Mudei para Nova York, comecei a trabalhar sozinho, pensava que fazia as regras, pensava que estava livre... tolice.

O velho detetive faz uma pausa, olha para um ponto no infinito. Murdock vê seus olhos brilharem, antes de seu corpo contorcer-se e ele arfar em dor.

— Senhor? O senhor está bem? — Murdock levanta, Wayne não o deixa aproximar-se, dizendo que já está bem, mas sua muito — Vou pegar um copo com água.

Murdock dá a volta num pequeno balcão, da mesma madeira escura dos outros móveis, retira uma garrafa de uísque. É aí que Wayne sua muito, muito frio. O advogado pega a água e percebe os olhos vítreos e amargos de Wayne, guarda as garrafas e dá a água para Wayne.

— Nova York?

— Sim.

Capítulo I: Batman?

Na última noite de outono de 1949, Wayne sentou-se em seu carro, as portas abertas, esticou as pernas para fora, pegou uma garrafa de uísque na suas bagagens, abriu e bebeu-a no gargalo... contemplando sua mansão que fora vendida para pagar dívidas de Kyle... ainda nesta noite fria, ainda sóbrio, Wayne viu Alfred deixar a mansão. Eles não trocaram uma palavra, apenas se olharam, sabiam o que sentiam e pensavam a respeito do outro.

Depois foi sua vez de ir e foi para Nova York. A cena de bebedeira se repetiu todas as duas noites e dois dias que ele levou para completar uma viagem que de carro durava um dia e uma noite. Quando chegou à grande maçã, instalou-se num apartamento perto da ponte, no Brooklyn, e recomeçou sua vida, na companhia de dois novos vícios: a escuridão e o álcool.

As sombras serviam Wayne, o permitiam investigar casos, como só ele sabia fazer. As trevas lhe serviam de paredes de um abrigo sem fronteiras, já que ele não era voltado aos escritórios e aos papéis.

O alcoolismo deu ao cavaleiro a pobreza, fez dele o melhor detetive mais mal-pago da cidade de Nova York. E ele ainda pensou ser livre.

Na semana seguinte à sua chegada, Wayne foi até um restaurante em frente ao distrito policial. Queria prestar atenção no movimento dos policiais, saber quem eram os chefes, quem dava as ordens, e também ouvir sobre os casos que ocorriam.

Num dia de inverno um homem com um farto bigode, um pouco grisalho, usando óculos, forte e aparentando menos idade do que tinha, aproximou-se. Era o comissário Gordon, chegando perto de Wayne, como quem não quer nada. E ficaram conversando durante umas boas horas. Wayne disse-lhe que fora detetive em Chicago e que fora expulso, ouviu do comissário que odiava a corrupção da polícia e lutava para desburocratizar a ação da lei, mas que muitas vezes via bons policiais entulhados por papéis ou amarrados à propina.

— Às vezes imagino que seria muito bom ter policiais competentes trabalhando fora da polícia para que não tivessem que perder tempo fazendo relatórios, mas como me disse, como saber quem é um Jean-Paul Valley? — Gordon sabia jogar verde para colher maduro, suas indicações eram claras como água para o detetive Wayne.

— Estou aqui para trabalhar, sr. Gordon.

— Saberei apreciar sua ajuda, se ela não atrapalhar.

Gordon sabia que a primeira impressão nem sempre é a que fica, por isso tratou de marcar um novo almoço para o dia seguinte. E foi assim que se seguiram as semanas, almoçaram todos os dias juntos. Wayne conheceu a filha do comissário e passou a ter por ela admiração e carinho, como a uma filha. Ela tinha muito de Kyle e algo dele mesmo, talvez fosse isso que o consternava.

Quase dois meses depois, numa noite de primavera, a tão apreciada ajuda de Wayne foi solicitada; ele passou pela delegacia, pegou Gordon e foram até as docas, falando pouco no caminho. Pararam à frente da porta de um galpão do cais, na noite que já caía empurrada pelo vento que agitava o mar.

— Este é um caso raro. — disse um legista que ali esperava — Doze pessoas foram mortas, cartas postas a mesa... — o homem jogou fora o cigarro e foi abrindo a porta do lugar — O detalhe, amigos: eles estão usando roupas e maquiagem de cachorro, é até engraçado... — disse sem rir.

A visão do fato foi ainda mais cruel. Todas as pessoas mortas estavam com os músculos faciais tão dilatados que pareciam rir, por debaixo da maquiagem. Além das vestes de cachorro e da mesa repleta de cartas espalhadas, charutos ainda acesos, garrafas e copos com bebidas.

— Meu Deus, Fogaça, pensei que você estava brincando. — Gordon colocou as mãos sobre a boca. Wayne, já trabalhando, foi contornando os corpos.

— A gente só brinca com coisa séria, comissário... ah! Tem esse bilhete aqui... — estendeu o papel para Wayne.

— "Onde está o Coringa? O cachorro comeu? HAHAHAHAH!!!" — Wayne olhou para Gordon, que coçava o queixo...

— Não teve graça. — disse o legista.

— Ele também só deve brincar com coisa séria. — disse o comissário.

— Eu já vi essa cena...

— É aquela pintura que vendem nas feiras; um bando de cães jogando pôquer. — lembrou Fogaça.

— Espere, esses são os Pasquale e os O'Shea.

— Mafiosos do East Side, os Canis di Napoli e os Bulldogs.

— É, era para ser uma piada. — constatou o legista.

— Não há um curinga no baralho. — Wayne contou as cartas, todas estavam viradas com a figura para cima.

— Mas o que falta não é o "'C'-'O'-ringa"? — perguntou o comissário, relendo o bilhete — Que tipo de piada é esta? — perguntou, olhando para Fogaça.

— Parece mais um espetáculo de horrores.

— Espetáculo? Quando cheguei à cidade, aqui funcionava um circo, que estava fechado por conta de um crime. — o legista olhou para Wayne pensando no tipo de hobby estranho este homem tinha: investigar assassinatos.

— Estranho, mesmo! Cinco mortes aconteceram aqui. Artistas do circo. Todos estavam com este riso no rosto. — relembrou Fogaça — Todos seguravam um osso com spray envenenado.

— Quem foi indiciado?

Doze cães. — disse, atônito, o comissário Gordon.

Naquela noite, Wayne cruzou os dados e descobriu que o circo havia fechado. Por causa das mortes, os mafiosos italianos e irlandeses foram formalmente indiciados pelos crimes, pois estavam numa disputa sangrenta na época e faziam do cais um ringue. Sem provas, ninguém foi preso e os doze cães eram os únicos que estavam presentes na hora do crime, por isso a brincadeira de Gordon. Wayne foi, no dia seguinte, a Jersey falar com o antigo dono e apresentador do circo; talvez ele tivesse uma pista. Gordon, que queria ver Wayne trabalhar de perto, e Fogaça, que estava de folga, foram com ele.

— Tem alguma idéia do que imprimiu aquele riso nas vítimas da noite passada? — perguntou o comissário.

— Foi um gás hilariante, modificado para funcionar como uma espécie de lança-perfume... foi o mesmo que usaram nas vítimas do circo.

Numa casa feia, perto de um belo lago, vivia o ancião, dono do circo. Wayne pediu aos seus companheiros que ficassem no carro, ele não queria que Fogaça o atrapalhasse. De dentro do Ford 49, os dois viram o detetive caminhar até a casa, bater à porta e entrar. Não demorou muito e o detetive saiu, com um papel em mãos, o ancião de barba mais vasta que sua estatura espreitava pela porta de tela.

Quando entrou no carro, Wayne passou o papel às mãos de Gordon, que o examinou. Era um folheto anunciando o novo espetáculo do circo, "Os Cães Que Jogavam Pôquer!!!", seguido de muitos textos de "Novo!" e "Extraordinário!".

— Não entendo, os cães não poderiam matar ninguém de rir. — disse Fogaça, que já havia bisbilhotado o folheto.

— Tem mais informação aí neste folheto? — Wayne executou a sentença.

— "O circo Fiorelli se despede do comediante 'C'-'O'-ringa!".

— É uma pequena nota de rodapé. O Coringa foi substituído pelos cães, o dono disse que o palhaço andava nervoso por não fazer ninguém rir e começou a usar um lança-perfume para fazer o serviço para ele.

Fogaça quase saltou do banco de trás para o colo de Gordon, e este último não acreditava: o Coringa era o suspeito e havia passado ileso pela primeira investigação. Mas o que mais o admirou foi a perspicácia de Wayne.

— Eu me lembro dele, esteve na DP como todos os outros. Ele não tirava o sorriso do rosto até que uns policiais começaram a falar dos cães e de como eles faziam rir. O palhaço ficou furioso e consternado, pensamos que era por conta dos amigos dele que morreram, mas agora... e o dono do circo?

— Ele sorriu das piadas e ficou ileso, no mais teve medo demais de morrer.

— E ele abriu a boca para você? — quando perguntou, Gordon pensou ter ouvido sua mente repetir: "ele teve medo demais de morrer".

— É, o Coringa adora brincar com coisa séria! — disse Fogaça, calando-se ao ver o olhar de Wayne pelo retrovisor.

— Ele quis incriminar os cães e não os mafiosos da East Side. — continuou Wayne — Encarou nossa interpretação como uma interferência em sua piada, e para que não perdesse a graça, matou os mafiosos, improvisando uma nova piada. — Gordon não dissera uma palavra, estava impressionado com a desenvoltura de Wayne — Fogaça, quando chegarmos à cidade faça uma pesquisa sobre o gás, preciso saber detalhes.

Quando chegaram a Nova York, já era noite. Wayne deixou o legista no necrotério, para seu turno de trabalho. No caminho para a casa de Gordon, uma garoa fina começou a cair. Percebendo o cansaço do policial, Wayne perguntou:

— Gordon, por que vocês chamam Fogaça por esse apelido? — Gordon sorriu consigo e disse...

— Um dia estávamos em meio a uma chacina. Um assassino passional matou a mulher e o amante, suicidando-se depois. Havia sangue e tripas até no lustre e nos abajures; todos chamavam o legista naquele mal-estar e eis que me entra o "senhor legista" com uma enorme fogaça cheia de queijo derretido e pingando ketchup. Não teve um que não vomitou, até eu. Menos o Fogaça, que ficou se perguntando: "Ué? Que foi?" — Gordon continuou rindo ao lembrar da cena, Wayne também esboçou um sorriso, enquanto parou enfrente ao prédio de Gordon e se despediu do companheiro.

Wayne se foi e a garoa ficou mais forte. Nos limites do Bronx, tudo já estava calmo, Gordon, visivelmente cansado, subiu as escadas escuras de acesso a porta, escolheu as chaves certas e então...

Recebeu um poderoso e forte golpe na nuca e caiu aos pés do agressor, que vestia sapatos duas cores e calças púrpuras.

Depois, madrugada no departamento de polícia, Wayne viu de longe a menininha de saia xadrez sentada numa cadeira. De vez em quando alguém ia lá dizer algo para confortá-la. Mas só quando Wayne se ajoelhou à sua frente e a abraçou, ela esboçou uma reação, chorando copiosamente. Wayne fechou os olhos e apenas a abraçou mais forte.

— Bárbara...

— Meu papai, tio... eu ouvi ele rindo, ele riu tanto, tanto, que me deu medo. — Wayne tremeu mesmo dentro da fortaleza do seu coração de aço — Ele vai voltar não é, tio? — ela olhou para Wayne, enxugando os olhos marejados.

— Eu vou achá-lo. — ela então beijou o rosto de Wayne.

— Vou esperar, tio, vou esperar, não vou sair daqui. — Wayne entendeu que ela só queria ter certeza do retorno de seu pai, mas nem ele tinha.

— Fica aqui, menina, vou buscar teu pai. — Wayne retribuiu o beijo no rosto da menina e saiu, mas não antes de olhar para trás, nos olhos marejados da menina.

Capitulo II: No Coração das Trevas

— Eu não devia ter olhado para trás.

Diante de Murdock, o velho detetive leva a mão ao coração. O advogado lembra de uma velha freira, sua amiga, que sempre lhe dizia: "quanto mais duro o coração de um homem, mais fortes são os golpes que o partem".

— Eu não consegui parar. — diz o detetive, com os olhos tomados por uma sombra.

Não é difícil de perceber que o detetive iniciou um caminho sem volta desde que aceitou passivamente a morte do Crocodilo e de ter sido roubado, financeiramente e sentimentalmente, por Selina "Mulher-Gato" Kyle. Um caminho de frieza, escuridão e endurecimento. Neste instante, tudo parecia ratificar que a liberdade que havia imaginado receber em Nova York revelou-se uma prisão, prisão de sentimentos contraditórios como amor/ódio, frieza/calor, amizade/inimizade.

O Coringa parece, ao advogado, o catalisador desta explosão. Murdock não sabe, mas pressente que Wayne foi ainda mais longe.

1950. Antes de entrar no carro, o legista Fogaça veio ao encontro de Wayne. Ele trazia consigo um saco com provas: uma dentadura de plástico que saltitava interminavelmente, do tipo que é vendido em época de halloween, e um bilhete escrito numa enorme carta do curinga de baralho.

— Wayne, os outros não queriam que você visse, mas...

— "Senhoras e senhores, panacas e engomadinhos! Dêem risos e gargalhadas!!!"

— Bruce, você me pediu uma pesquisa sobre o gás do riso e descobri quem o produziu... foi você.

— Eu?

— A Wayne Corp., no começo da década passada. Fizeram testes e reprovaram.

— Fogaça, ligue para esse número... — estendeu um cartão para o legista — Meu velho amigo Alfred está na cidade; peça para vir cuidar de Bárbara, ele não vai se recusar.

— Está bem.

— Não há antídoto para o gás?

— Não, você viu; ele é instantaneamente mortal. — o detetive, em sombras, fechou a porta do carro.

— Você vai atrás do Coringa? — perguntou Fogaça, enquanto se ouvia a partida do motor.

— Sim. — disse o detetive, arrancando em alta velocidade.

Laugh'n'Dance, antigo clube de marinheiros nas docas. Não foi difícil descobrir o esconderijo do Coringa. Manchas de óleo de navio e água salgada no bilhete e o letreiro aceso do clube abandonado, o palhaço não tinha motivos e não queria se esconder.

Um detetive entrou no carro, um homem chamado Bruce Wayne, de coração partido. Esse homem não saiu do carro; apenas aquele que é o cavaleiro das trevas entrou nas sombras das docas. Já não era mais um homem, mas também não era um animal, um morcego: era o cavaleiro das trevas, o bat-man, o Batman.

Não tinha mais um coração, já não lhe importavam mais Bárbara, Gordon, não importavam mais. Seu corpo sombrio estava fundido a tudo, à noite, sua mente fria não poderia ser compreendida por nós. Se você pudesse vê-lo, não poderia acompanhá-lo, pois não saberia onde é sombra e onde é o Batman.

O cavaleiro entrou no galpão do Laugh'n'Dance pela escotilha de ventilação no telhado. A madrugada não tinha estrelas no céu, nem céu havia, porque tudo estava tomado de sombras que, agora, desabavam numa chuva. O Batman ouviu música no interior, a voz que cantava em ondas e deformações, nas imperfeições do disco. Quando, pelo forro, chegou ao que seria o centro do galpão, à pista de dança do clube de marinheiros, viu que a chuva entrava. O teto daquela parte desabara, a pista estava suja de entulho e garrafas quebradas, mesas e papéis, tudo encoberto por uma camada de água da chuva. Uma lâmina de lama se formava no chão, que quando seco estava empoeirado. Das trevas, do que seria um resto de forro, olhos observavam, era Batman. Ele agarrou-se numa corda presa ao teto e pousou no centro de tudo. A música parou e só se ouvia um arranhar da agulha no disco que ainda girava.

Súbito, e concomitante a um trovão que espalhou seu ruído pelo salão, seis crocodilos caíram enforcados de debaixo do forro, de onde em trevas o Batman surgira. Mas não eram animais, eram homens mortos em roupas de crocodilo. A chuva escorria pela roupa verde e pela capa daquele que vem das trevas, seu cavaleiro. Nenhum deles era Gordon.

Das sombras do espaçoso clube, uma gargalhada começou a soar; ria e ria e ria sem parar. O Batman correu para o coração das trevas e atropelou o toca-discos, que parou de repetir a gargalhada. Ele não parou de correr e viu as portas do fundo se fecharem, atrás de uma figura que concluía a sessão de gargalhadas. Quando saiu, a chuva que já era forte serviu como cortina para um espetáculo que acabara, encerrando, escondendo em si o artista, o Coringa.

O cavaleiro voltou para as trevas no centro do salão, as pessoas/crocodilos estavam em decomposição. Neles, um bilhete, um nome, cada um era membro de uma família, todos com óculos com lentes fundo-de-garrafa. Eram da família do homenzinho que caçava o Crocodilo. O Batman puxou a corda com que descera e caiu um último corpo, quase uma caveira de fedor putrefato. Era o homenzinho que fora morto por Valley, companheiro de um detetive chamado Wayne, em Chicago. Nele, o bilhete dizia: "A comédia consiste em repetição, no inesperado e na falha dos atos cotidianos e comuns. Me diga o que falta nessa cena? O que falta para você rir?"

Obsessão pelo riso, socio e psicopatia. O que faltava para ele matar Gordon?

Batman saiu do galpão e entrou no seu Ford V8. Não havia uma peça de sua roupa que estivesse seca, no retrovisor se via o letreiro do clube, no qual apenas o escrito "laugh" (*) estava aceso.

No outro lado da cidade, Alfred chegou ao departamento de polícia. Bárbara encostou a cabeça no colo do legista Fogaça. O velho mordomo acordou o legista e se apresentou em silêncio para não acordar a pequenina. Os dois decidiram levar a menina para casa, mas ela acordou.

— Não, não posso sair daqui, o tio Bruce vai trazer meu pai e eu tenho que ficar aqui.

— Pequenina, eu sou Alfred, sou o... "pai" do Bruce, ele já falou de mim? — sentado, carinhosamente Alfred arrumou o cabelo ruivo e as roupinhas da menina. Ela respondeu positivamente à pergunta — Ele pediu para eu levar você para a casa dele e cuidar de você. Por que ele tem muito trabalho e vai demorar.

— Mas e meu pai? — a menina, nervosa e triste, não sabia o que fazer.

— "Tio" Bruce disse que vai achá-lo? — perguntou Fogaça.

— Disse.

— Então eles vão tomar um uísque... digo, um leite, para esquentar antes de vir para cá. Você quer um leite quente? — perguntou Alfred, olhando nos olhos da menina.

— Ha-ham... — o velho fez um sinal positivo para Fogaça, que só pensou no quão feliz foi a infância de Wayne, por ter um "pai" tão bom.

O velho mordomo carregou a menina no colo e, abrindo o guarda-chuva, saíram pela porta do departamento.

No seu carro, sobre a fria carcaça de Wayne, o Batman correu para o departamento de polícia, a fim de encontrar algum sinal, alguma pista que lhe indicasse o paradeiro do Coringa e, também, de Gordon. No banco do passageiro estavam todos os bilhetes escritos em cartas "curinga" de baralho e os discos que estavam no Laugh'n'Dance.

Ao estacionar na frente do DP, ele começou a juntar os papéis. Ouviu um grito, muitos cacos de vidro, seguidos da queda de um cofre, que deformou todo o capô de seu Ford. A chuva continuava incessante em Nova York, a figura nua de calor humano, o Batman, desceu do carro e encontrou um bilhete, em carta de baralho, dependurado no cofre: "Ooops! Onde estão seus papéis, querido? A Gata comeu?"

O Batman reconheceu que aquele era o cofre que deveria estar no apartamento de Wayne. Correndo, chegou ao escritório de onde veio o cofre, o escritório de Gordon. A janela, arrebentada, permitia a entrada do vento molhado. Espalhados no chão, roupas de entregador, junto a cacos de vidro um mecanismo de alavancas feito com o carrinho e a mesa de Gordon alçou o cofre. Não era segredo que qualquer um poderia entrar na DP.

Pelas paredes, scripts de piadas de um show imaginário de TV, cujo escritor e estrela era o Coringa. Em letras garrafais estavam anotadas "participações especiais". Dentre elas, Bruce Wayne, comissário Gordon, o Crocodilo e um jovem chamado Dick Grayson, artista de circo. Os roteiros do show datavam de dois ou três anos, os primeiros ambientados em Chicago. Batman viu que havia uma brusca interrupção na seqüência, quando uma das piadas sobre Wayne foi interrompida pela Mulher-Gato... o Coringa parecia ter acompanhado a vida de Wayne, mas o motivo não ficou claro... logo, o primeiro capítulo ambientado em Nova York chamou a atenção daqueles olhos que observavam das trevas. Outra quebra abrupta na seqüência, no que parecia ser o último show. Toda a folha estava rabiscada e com frases soltas, pois um acidente aconteceu: doze cães entraram em cena e roubaram a piada do Coringa. Fato: ter o carro atingido pelo cofre foi uma coincidência, mas os roteiros daquele show bizarro e os bilhetes, inclusive o do cofre, terem sido deixados para que ele os encontrasse, não.

Depois de descer ao estacionamento, o Ford estava rodeado de policiais, curiosos e policiais curiosos. Quando passou por entre as pessoas não houve uma só, nem mesmos os embriagados, que deixou de sentir um frio na espinha. Todos já sabiam o que para ele era fato: Wayne não estava ali, Batman estava.

Usando a combinação, ele abriu o cofre. Dentro, não havia nenhum de seus documentos ou dinheiro. Estava repleto de latas do lança-perfume hilariante que fora modificado pelo Coringa, além de uma centena de dentaduras de halloween.

No meio da multidão, que na presença daquele cavaleiro das trevas já começava a se dispersar, estava Fogaça. Sem rodeios, o cavaleiro pegou a chave do carro do legista e teve, por um segundo, uma dúvida: Para onde ir? Jersey, para tentar tirar informações do velho dono do circo. Talvez ele conhecesse mais sobre o Coringa e seu envolvimento com o Crocodilo e o jovem Grayson.

Perto da ponte de Brooklyn, o velho Alfred chegou ao apartamento de Wayne. A porta estava aberta, ele entrou, a luz não acendeu. Então, ouviu-se uma gargalhada e uma luz verde ofuscante surgiu...

Próximo ao túnel para Jersey, Batman caiu em si; ele não se importou com a invasão do apartamento, mas Wayne, sim. E o Coringa queria fazer rir com que Wayne sentia. Então, Batman deu meia-volta e correu para o apartamento do detetive.

Lá, as escadas do prédio, que já era velho nos idos de 1950, tinham as luzes apagadas, mas isso nunca foi problema para o cavaleiro que anda nas trevas. Ele subiu dois ou três andares e chegou ao corredor de seu apartamento. Uma das luzes teimava em ficar acesa, mas por vezes desligava, numa intermitência ignorada pelo Batman. A porta do apartamento estava fechada, mas por debaixo dela uma luz verde brilhava. Ele arrombou a porta e diante de si viu, em sua sala, um picadeiro armado. No centro, sobre uma caixa colorida, um toca-discos, de onde se ouviu a voz quase caricata de um homem contando piadas. O Batman caminhou pelo círculo pintado, em vermelho, tirou a agulha do disco, fez uma leve pressão sobre a chave para desligar o aparelho, e... saltou da caixa, derrubando a vitrola, um palhaço sorridente, com um cartaz nas mãos: "Estou em Jersey, panaca! Não sou piegas como você!!! Sou o Coringa!"

Capitulo III: A Piada Mortal

Murdock quase debruça-se sobre a mesa, talvez não seja ansiedade, mas o peso do ar que lhe força os ombros contra o chão. Ele também já não sabe se fala com Wayne ou o Batman, não sabe onde começa um e o outro termina, mas, contudo, percebe que essa é a chave para entender o velho que está diante de si, sua ambigüidade. Talvez tão ambíguo quanto o Coringa, que era um homem, mas queria ser só o Coringa. Mas quem pode ser uma máscara apenas? Dentre as duas ambigüidades, o advogado Murdock prefere ser um ser das trevas somado a uma pessoa normal, em uma única figura, a ser apenas a controvérsia, o desajuste, o desvio, os quais os mais extremados chamariam de lado mau.

— Imagino como ficou ao saber que seus amigos, seu "pai" e uma criança estavam na mão de um louco...

— Não, não pode saber. Nem eu podia ver. — Murdock percebe, então, que Wayne não está com o foco nas vitimas, senão, por tudo o que vivera e vira, da morte de seus pais, dos quais pouco falou, passando pela ladra Kyle, a expulsão da polícia de Chicago, até o alcoolismo, Wayne teria, ele mesmo, tirado sua própria vida — Mas não havia acabado, sr. Murdock. Nunca acaba...

Era alta madrugada, a estrada encharcada que levava a Jersey parecia não ter fim. Mas certa hora acabou, chegou ao lago em que vivia o ancião dono do circo que, no dia anterior, ele havia visitado. O pequeno caminho que levava à casa estava todo ladeado por palhaços iluminados por velas, um trabalho meticuloso, próprio de um show de circo, próprio de quem queria fazer "o maior espetáculo da Terra".

Ele era o cavaleiro das trevas, parou o carro de Fogaça e ao descer não estranhou a escuridão. Caminhou até a casa. Seu foco, claro, era o Coringa. Subiu os degraus de madeira que davam acesso à porta e na varanda havia algumas caixas-surpresa, daquelas que, ao serem abertas, projetam palhaços sorridentes. Não havia um só ruído ou uma luz diferente, a porta estava entreaberta. Ele a abriu e a mesma escuridão se estendeu para o interior. Subitamente, um estrondoso som de caixas e trombetas, uma fanfarra tocando o tema principal do circo. A música, tão subitamente quanto surgiu, se foi, e uma gargalhada ecoou pela sala, tanto quanto o cheiro da madeira podre...

— Respeitabilíssimo público! Com vocês o legítimo, único e inigualável embaixador do circo, o palhaço, o Coringa!!! — gritou a toda uma voz afeminada, enquanto luzes verdes se projetavam no centro da sala — O Coringa!!!

— Nãããão!!! — gritou a voz da menina Bárbara.

Batman deu um passo, mas logo as outras luzes se acenderam, iluminando de um lado os corpos amarrados de Gordon, do velho dono do circo e de Alfred. Não se podia saber quem estava vivo, cada corpo estava disposto a uma altura diferente, presos a uma vara como num móbile. Do outro lado, estavam Bárbara, consciente, e um jovem menino em seus treze ou quatorze anos. Provavelmente o Grayson do qual ele lera nos roteiros dispostos na sala de Gordon.

— Por que você não ri? — perguntou, em tom de ironia, o Coringa — Por que, desde que eu te conheci... — pegou um vidro do gás do riso — Você não ri? Quando o Crocodilo foi preso, eu vi no seu rosto um esboço, mas nada, então eu pensei: se ele ver tudo o que o vermezinho-limpa-bosta-de-réptil pode fazer e o prender, ele vai rir, mas nada! — gritou o palhaço, seguido por uma gargalhada — Então tive que pôr fogo numa escola! O fraquinho-limpa-bunda-de-croc ficou grudado na menina-crocodilo, a professorinha, e nem viu que eu fiz dele o Crocodilo! Hahahahahaha!! Ironia, elemento clássico da comédia!!! Hahahahahaha!!

O Batman deu dois passos, mas...

— Peraí! — Coringa levantou um frasco do gás para a menina que chorava — Mas foi aquela ladra que te roubou... nem sei se te chifrou. Ah! Foi ela que me fez feliz, mas você chorou... — o palhaço modificou a voz, como quem fala com crianças, e fingiu enxugar lágrimas — Hahahahahaha!! Agora, escolha: salve as crianças ou os velhos, salve um pouco de Wayne-orfão ou salve os pais de Wayne. No mais, hahahahahaha!! — o Coringa jogou dois vidros do lança-perfume hilariante no chão, Batman percebeu que seria impossível salvar os dois, não pensou, não era mais Wayne, mas sim o cavaleiro das trevas. O Coringa saiu gargalhando pelos fundos. O gás se espalhou rapidamente, muito rapidamente. Batman pegou o móbile com as crianças e saiu pelos fundos, o gás se espalhou até a uns dois metros da casa. O Batman deixou as crianças de lado, seguras. De onde estava, pôde ouvir os últimos "risos" dos homens dentro da casa, antes de morrerem. Só restava ao cavaleiro caçar o Coringa. Correu atrás do palhaço enquanto ele tentava entrar num carrinho de circo, do tipo no qual entram mil palhaços, e o pegou pelo colarinho.

Hahahahahahahahahahahahahaha! Você... hahaha... Você não pode ser como eu, vê? Você é a piada!!! Hahahahaha!!! E eu conto o final: você não vai poder nunca me fazer parar de rir!!! Hahahaha!!! Eu vou rir para sempre, rir, rir!!! Hahahaha! Minha piada, Wayne!!!! Minha!!!

Murdock sente um arrepio percorrer o corpo e, novamente, vê que é Wayne, sua voz ancestral e seus olhos frios diante dele. Ele arfa e sua frio. Mais uma vez, é dor, é o Coringa.

— Não. A resposta é não.

— Como? — o advogado olha os olhos brilhantes de dor do velho.

— O senhor não pode me ajudar. Fiz a lei à minha maneira. Me tornei o Coringa... lembra o que lhe disse? "Se a lei não é a justiça, então eu teria que usar de sua ajuda". E você está certo, a lei é a justiça que você jurou defender, então, para mim, não há saída. Que se faça justiça, devo agüentar as conseqüências dos meus atos. — o velho levanta-se, pega o sobretudo, o chapéu e, lentamente apoiado na sua bengala, aproxima-se da porta.

— Sr. Wayne? — o advogado levanta-se, apóia as mãos na mesa — Foi há quarenta anos... — pondera Murdock.

— Eu o matei, sr. Murdock. Não suportei ser sua piada... eu o matei... e assim fui ele, e ele teve de parar de rir... eu era o Coringa, e ele não suportou ser Wayne, eu o matei.

— Mas, senhor... foi há quarenta anos. — mas o velho não ouve, saindo da sala para o corredor. Murdock titubeia, e quando sai à porta o velho cavaleiro já entregou-se às trevas do elevador, e se foi para seu coração.

Murdock arruma sua maleta, pôe nela alguns papéis, lentamente, enquanto a atmosfera ainda pesada demais se alivia aos poucos. Veste o paletó marrom. Acha sobre a mesa o velho cartão, "Bruce Wayne — detetive", pôe no bolso e se vai. Chega às duas da madrugada em casa, no velho bairro da Cozinha do Inferno.

Mesa posta. Karen, sua esposa, o esperou até o último instante, mas o sono a venceu, ela foi-se deitar. Depois de comer, Murdock escova os dentes e vai dormir. Ao toque da pele dele na pele suave de Karen, ela sorri, mesmo em profundo sono... e ele? Ele adormece.

Na manhã seguinte, Murdock acorda e vai seguindo o cheiro de café até a cozinha, coçando os olhos e pisando descalço no chão frio. Chega à cozinha e vê Karen no fogão, é assim todas as manhãs desde que saíram da casa no lado norte.

— Você chegou tarde.

— Foi o velho sr. Wayne... ele decidiu me contar toda a sua vida. — ele fala e caminha até a porta — E depois fiquei com aquele peso nos ombros, e eu nunca sei o que fazer, então dei uma volta de carro pela vizinhança. — termina a frase, abrindo a porta e pegando o jornal.

— O sr. Wayne tem um jeito estranho mesmo... eu sei que combinamos de não falar dela, mas ele me fez lembrar dela... — nisso, Murdock, sentado à mesa, abre o jornal e se esconde atrás dele. Karen respira fundo, pôe os copos sobre a mesa e dá as costas, ela está irritada — Ele exerce aquela... aquela atração sobre você, como Elektra. — ele enterra a cabeça, ainda mais fundo, nas folhas do noticiário policial e...

Não! — exclama o advogado.

Karen vira-se para o marido sentado e o encara. Ele é o espanto em pessoa.

— Não, não pode ser! Karen, o Wayne, foi ele... e-eu, eu não posso acreditar... foi na noite passada!!! — ele corre para o quarto e deixa as páginas abertas do The New York Times daquela manhã de outono. A manchete principal:

Coringa: psicopata octogenário morto no Arkham

Morto na noite passada assassino em série que espalhou o "pânico hilariante" na década de 40


Murdock deixa o apartamento correndo, sem olhar para trás, para sua esposa. Karen, com o omelete em mãos, apenas respira fundo, mais uma vez...

— É... Wayne é igualzinho a ela.


A seguir: O julgamento de Batman.


:: Notas do Autor

(*) Laugh, em inglês, significa riso ou gargalhada. voltar ao texto



 
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