hyperfan  
 

Batman / Demolidor - Do Coração das Trevas # 01

Por Conrad Pichler

Do Coração das Trevas
Parte I

:: Sobre o Autor

:: Próxima Edição
:: Voltar a Batman / Demolidor - Do Coração das Trevas
::
Outros Títulos

Capítulo I: Solução Homogênea

A porta do elevador se abre lentamente, e um homem idoso sai do seu interior, apoiado em uma bengala, todo vestido de negro — sobretudo pesado e chapéu à moda antiga. O hall estende-se à sua frente, paredes esverdeadas, uma mesa de madeira escura ladeando uma porta igualmente escura emoldurando o vidro que ostenta, em letras vermelhas: Matthew Murdock — Advogado.

Sobre a mesa, algumas fotos, o advogado e uma bela jovem, talvez nos idos da década de setenta, em alguns quadros na parede velhas matérias de jornal amarelam, notícias do tempo em que o advogado tinha grandes casos, como o da morte do cônsul grego. "Elektra assassina? — segundo dia do julgamento, a filha matou o pai?" estampava a manchete na primeira página do The New York Times, em 4 de novembro de 1982. Este caso lhe renderia mais duas outras manchetes, também expostas nas paredes do hall de recepção do escritório: "Advogado indica envolvimento de magnata", The N. Y. Times, 7 de fevereiro de 1983; e "Encontrado e preso assassino do cônsul — O 'Demolidor", na linha de frente do FBI, ajuda na prisão" — The N. Y. Times, 19 de março de 1983.

Ele que observa as manchetes, com seus olhos cansados, não lê nenhuma novidade sobre o advogado, que enfrentou sozinho um cartel de drogas e corrupção que dominava a cidade. De fato não haveria outro motivo para que ele viesse até aqui; em seus oitenta anos de vida, ele nunca reconheceu alguém como seu igual, até que Matthew "Demolidor" Murdock abriu um processo contra Wilson Fisk, o "Rei do Crime" de Nova York. O advogado não tinha medo, ele também não.

Suas pernas idosas cansam-se de ficar de pé, ele senta-se na poltrona de couro dando as costas para os quadros com os velhos jornais. Observa então o relógio de parede e confirma o horário no seu relógio de pulso, são 5 para as 6. Nesse instante, uma jovem senhora, de belos cabelos curtos e ruivos, sai pela porta do escritório e dá de cara com a figura obscura e imponente do velho.

— Poderia ajudá-lo? — ela suavemente pergunta.

— Sim. — há um grande contraste entre a gravidade da voz do homem de negro e a voz suave da mulher — Eu gostaria de falar com o sr. Murdock, por favor.

— Sim, mas... — o olhar do homem se projeta para dentro dos olhos da mulher que, sentindo o frio e a dureza de sua alma, pensa melhor em sua resposta — Ele estava se preparando para sair, mas eu acredito que possa ter um tempo para o senhor... senhor...?

— Wayne, Bruce Wayne.

— Um minuto, por favor, Sr. Wayne. — ele observa o olhar da mulher e vê que, ainda aos oitenta anos, sua presença cria um impacto nas pessoas e, se não fosse assim, talvez nunca fosse levado a sério, como nenhum outro velho é.

Depois de um breve instante, ela volta, com um ar de desalento, e pede para que o homem entre.

No interior do escritório, a porta do lavabo está entreaberta; Murdock está lavando as mãos. Wayne pode ver a figura de uns cinqüenta anos, cabelos fartos, um belo rosto, mas um pouco marcado pela idade e pela vida de muitos desafetos. Wayne tem tempo, antes de Murdock deixar o lavabo, para ver que dentro do escritório há alguns diplomas e fotos espalhados pela parede. Murdock parece ser daquelas pessoas que sempre gostam de ter suas lembranças à frente dos olhos, para que não passe por cego em face ao seu passado de conquista, que fora interrompido, bruscamente.

— O senhor admira muito seus colegas, sr. Murdock. — a voz soa terrivelmente grave no interior espaçoso do escritório.

— Sim, sr. Wayne... acredito que diz isso pelas fotos, meus poucos amigos sempre estiveram comigo e eu com eles.

Murdock desliga a luz do lavabo e se dirige à sua escrivaninha; quando vê a figura em sua mesa, se surpreende o quão é idêntica a imagem que fizera em sua mente, do homem a quem pertence a voz que ouvia, talvez um pouco mais idosa, mas não menos severa e obscura.

— É exatamente assim que os amigos se tornam valiosos, sr. Murdock, em pequeno número, ou quando não existem. — o sentimento de surpresa é dominado com eficiência, um velho advogado sempre sabe controlar suas emoções e sua curiosidade.

— Prefiro os poucos amigos a nenhum, sr. Wayne...

— Eles foram muito importantes no momento em que enfrentou Fisk, acredito...

— Não, eles foram importantes quando perdi para Fisk. — Wayne também é experiente para esconder seus sentimentos, mas para ele não há surpresa no advogado.

— Quando li há alguns anos sobre a perda do caso, percebi que não haveria outro com quem pudesse contar.

— Como?

— Você enfrentou Fisk com ousadia, mesmo sabendo que suas provas poderiam ser insuficientes ou mesmo anuladas pelo juiz. Afinal, o Rei do Crime poderia comprar quantos jurados quisesse.

— Ousadia, sr. Wayne? Ou seria convicção?

— Talvez ambos, para não aceitar um acordo tão generoso...

O estômago de Murdock queima como sobre o gelo, lembrando-se da oferta de três milhões de dólares feita por Fisk, o Rei.

— O acordo... não o aceitei, porque acreditei estar fazendo o certo. Acredito na justiça e na sua abrangência sobre todos. Sendo assim, aceitei o risco de estar errado.

— E estava?

— Não. Mas quem acredita que a justiça se resume a sua própria interpretação da lei ou nas disposições favoráveis de seus próprios interesses?

Wayne respira fundo e seu olhar parece se perder, mas o que poderia parecer um pouco de desatenção é, de fato, dor.

— O senhor está bem?

— Sim, mas meu corpo insiste em pensar diferente. Me diga, você acredita que ainda há justiça na lei dos magistrados?

— Acha que eu estaria aqui, ouvindo o senhor ou qualquer um que tenha uma causa, e oferecendo meus serviços, caso não acreditasse?

O velho espreita os olhos de Murdock e diz:

— Por isso, preciso de seus serviços, sr. Murdock, preciso de sua ajuda. Quarenta anos... quarenta...

— Qual seria o problema, sr. Wayne?

— Minha vida, tenho que lhe contar... se eu estiver certo sobre a justiça, precisarei de sua ajuda, caso contrário, tudo acaba esta noite... — novamente o velho se revira na cadeira, deixando escapar um gemido de dor. Murdock, preocupado, decide ouvir a história do homem — Talvez, sr. Murdock... talvez a justiça seja parte de nós... e talvez fazer o que se acredita ser certo seja a verdadeira forma de cumprí-la... mesmo além da lei... e como disse, se essa for a escolha, é só agüentar as conseqüências depois. — Murdock percebe que o velho é frio, pela dor física ou por outra, mais latente... — Eu matei, matei um homem... meu erro?

Capítulo II: O Que Até Um Cego Vê

Eram os anos de ouro, décadas de 40 e 50. Chicago era uma cidade linda com grandes prédios, grandes cabarés e, é claro, seus mafiosos e seus crimes. A polícia era muito bem paga para fazer vista grossa, mas nem todos os policiais agiam assim e, de fato, estes sempre sumiam ou eram convidados a sair da corporação. Exceto um, Bruce Wayne, filho de industriais mortos por assaltantes. O menino Wayne, mesmo em face a mil possibilidades, escolheu a polícia, a vida de detetive, entregou o controle das indústrias nas mãos dos acionistas, tornando-se, em menos de dez anos de trabalho, o maior detetive da Homicídios e Roubos da polícia de Chicago, fama adquirida por solucionar os chamados "casos coringa", aqueles que sempre eram estranhos demais e dispendiosos demais para uma maioria preguiçosa de policiais. No fim, o "homem-morcego", o "cavaleiro das trevas", tinha os casos resolvidos em dias, para o espanto da torcida contrária.

Wayne não era muito de amigos, principalmente quando os poucos que se aproximavam dele sempre surgiam com frases do tipo "ele não tem mãe, nasceu de um demônio", ou "o 'morcego' está 'cego' para pegar um de nós, ele não trabalha, caça!". E havia muitos que falavam de sua perspicácia e persuasão. Para Wayne não havia em quem confiar, Wayne era sozinho.

Wayne não levava ninguém à sua casa há uns cinco anos. A cama grande com ar de aristocracia, como só os grandes ricos poderiam ostentar. O telefone tocou e no meio daqueles cobertores emergiu o homem, atendendo e, após desligar, já estava na garagem dando a partida no seu Ford V8 1949, modelo do ano.

No outro lado da cidade, minutos depois, numa das maiores creches de Chicago, chamas altíssimas projetavam uma grande sombra no chão, encobrindo Wayne, estático diante do inferno.

— Foi muito rápido...

— Foi planejado, Valley. Não havia escapatória, portas e saídas de emergência obstruídas pelo fogo.

— Como soube?

— Não há sobreviventes.

— Cem crianças morreram, mais vinte funcionários... — disse Valley, vendo o outro se afastar — Surpreendidos pelo fogo e pela rapidez das chamas. — enquanto falava, Wayne se aproximava do prédio — Então o teto caiu.

— Acabou assim.

— É, faz uns três minutos.

Valley sempre fora apenas um observador quando o cavaleiro das trevas se aproximava da cena de um crime, como agora, quando via o detetive de cócoras, mexendo numa boneca, sem ouvir qualquer relatório dele, que havia chegado antes.

No outro lado da cidade, grandes olhos atrás de grossas lentes de óculos observavam o caminhar pesado daquele mostro verde. Sim, verde. Um escamoso homem-crocodilo verde. O homenzinho se escondeu atrás da cerca de arame. Medo?

Na semana seguinte, os papéis vieram para Wayne. Fora um atentado, não um acidente, o que era óbvio para o detetive que, espalhando as fotos na mesa, observou detalhes do lugar. Mas chamou-lhe a atenção uma foto da placa caída da creche: "Oblatos Sisters' Crook District Elementary School" (Creche do Distrito de Crook das Irmãs Oblatos). Uma das letras "o" de Crook e outra das letras "o" de Oblatos estavam pintadas como olhos, as demais letras "o" como bocas cheias de dentes, mas para Wayne o que não estava pintado era mais importante: "Crook" virou "Crok", isso somado a dentes e olhos grandes como de um crocodilo. E tudo ficou claro, era um recomeço para o caso do "Crocodilo".

Wayne pegou o arquivo do caso, uma lista com os funcionários da creche, outra com os funcionários que morreram no incêndio, com um saldo positivo na lista dos funcionários. Ou melhor, uma funcionária. Uma professora, Louise Gettar.

Atrás dos óculos que refletiam a pouca luz do dia cinza, ele via tudo, o Crocodilo estava aqui, diante dele, na escola incendiada, uma monstruosidade réptil apenas observando.

Ali mesmo, uma jovem vestida de negro estava de pé sobre as cinzas do incêndio, alheia ao que se passava em volta, fazendo preces. Ele, então, se aproximou silenciosamente da jovem chorosa e pôs a mão em seu ombro. Ela gritou, assustou-se, quase caindo sobre as cinzas, mas ele a apanhou em seus braços e quando o chapéu dela caiu, viu o belo rosto da jovem professora, apavorada.

— Gettar? — ele perguntou, preso no olhar dela.

— Sim, sou eu... que-quem é vo-você? — ela estava com os olhos arregalados, muito medo preso no seu coração.

— Sou Bruce Wayne, detetive da polícia... — ele, que já havia reencontrado seu centro, continuava frio... ela, ao ouvir o que ele disse, recolheu seu chapéu e afastou-se.

— Estou aqui para ajudar a senhorita... por favor... — ele mal teve tempo de terminar e ela fugiu correndo.

Do outro lado da rua, o homenzinho viu o Crocodilo. Tivera medo? Ele não podia entender como o poderoso réptil havia parado e talvez, ele mesmo, em sua fraqueza e ódio, estivesse muito abalado para pensar.

Na departamento de polícia, Wayne encontrou Valley, o detetive que cuidou da prisão do Crocodilo.

— Valley, obtive a informação de que o Crocodilo recebeu a liberdade assistida... como era o nome da última vítima dele?

— Gold... Golder... algo assim...

— Gettar, Louise Gettar?

Valley assentiu com a cabeça.

— Mas ela só recebeu ameaças e ficou bem. Wayne, o que isso tem a ver com o incêndio?

Wayne pegou as fotos e suas anotações e deu para Valley. O Crocodilo era o incendiário, por causa da srta. Gettar, mas errou o alvo. Gettar não estava na escola aquele dia e está viva, correndo perigo.

Era uma noite escura, sem estrelas, fria como o coração de uma nevasca. O homem-morcego se escondia nas trevas de um telhado. Na rua lá embaixo, ele via a fachada do prédio de Gettar e do lado havia uma cerca. Atrás dela, o detetive Valley se escondia à beira da calçada cheia de poças d'água, pela qual descia a bela Louise Gettar, que constantemente olhava para trás, com medo, muito medo. Mal havia entrado pela porta e um homenzinho, com óculos fundo-de-garrafa desceu a mesma rua e parou aflito diante do prédio. Olhou para o interior e para os lados e correu para dentro, esse foi o sinal que fez os dois detetives correrem: Wayne saltou a distancia entre o prédio em que estava e o da professora, precisamente como num vôo de morcego, Valley se enroscou com o alambrado que o separava da calçada. O segundo que Valley perdeu permitiu ao homenzinho entrar no elevador. Valley foi obrigado, então, a subir pelas escadas. Para Wayne tudo estava mais fácil, bastava descer dois andares pela escada de incêndio e estaria no apartamento de Gettar. Quando Valley chegou ao corredor interno, o homenzinho estava diante da porta da professora, estático.

— Parado! Polícia!

— Não, não ele está lá, ele matou gente... — Valley não ouviu a voz do homenzinho, que correu para a janela do corredor. O detetive o seguiu, até quando o franzino homem saltou pela janela, sobre uma casa vizinha.

No interior do apartamento, Wayne acalmou a professora apavorada, que pensou ser o detetive o assassino. Súbito, um tiro! A mulher caiu em lágrimas abraçando o detetive, que não se abalou; olhou pela janela e viu o homenzinho caído no chão molhado pela chuva e pelo sangue, os óculos grossos, quebrados, jogados de lado. Valley, parado, projetava sua sombra sobre o corpo, segurando a arma fumegante.

Enquanto olhava a cena no pátio atrás do prédio de Gettar, Wayne sentiu medo em tomar a lei por suas próprias mãos. Mesmo que provavelmente não chegasse às vias de fato como Valley, estava tendencioso a agir como seu companheiro. Contudo, falou mais alto o sentimento de não se dispor a ficar parado vendo a justiça se perder.

A voz dele, sempre a voz dele, traz uma sensação ancestral a Murdock. É como se Wayne se multiplicasse em umas poucas pessoas que Murdock conheceu. Isso impressiona e prende a atenção do advogado.

— Espera! E o Crocodilo?

— Era Gettar.

— Como?

— O homenzinho tinha uma espécie de esquizofrenia, acreditava que era perseguido por um crocodilo humanizado que tentava lhe matar... na verdade, por ser tão frágil, foi usado na infância pelos tios para fazer trabalho sujo no circo da família. Ele tratava dos crocodilos, morria de medo das feras, tanto que sempre que fazia algo errado lhe diziam: "ele vai te pegar", "vão te morder". Um dia foi atacado por um deles, e matou o seu agressor. Então viu que esse era o caminho... passou a ver os tios como crocodilos humanizados e os matou. Os policiais que foram lhe prender: crocodilos! Foi assim com Gettar, ela o repudiou e virou um crocodilo, ele tentou matá-la mais foi pego, quando voltou para a rua foi atrás dela novamente... assim ficou o relatório final.

Murdock surpreende-se como as mentes criminosas parecem livros abertos de leitura fluente para o velho detetive.

— Foi por isso que ele incendiou a escola e a inscrição na placa?

— Quem escreveu não assinou a obra. E aí que está a questão: Gettar não estava lá, portanto o crocodilo também não... e como saber o que ele fazia no prédio de Gettar? Por ter ido longe demais, não apoiei Valley e o indiquei à corregedoria. Ele ficou fora das ruas por algumas semanas até tudo ser esquecido, menos minha "traição": condenar um amigo por cumprir a lei. Como disse, eu estava mais para Valley que para a corregedoria, mas a dúvida quanto a lei ser feita por nós mesmos pertencia ao homem-morcego e não ao detetive Wayne.

— O homenzinho nunca tinha assinado nenhum crime... ele não tinha estilo, era um doente. Talvez o "Crocodilo" já não existisse?

— Ou talvez, sim. — Wayne enxuga o suor da testa com um lenço olha para os lados e a escuridão da meia-noite já começa a aparecer.

Capítulo III: A Night For A Nighthawk

Wayne, então herdeiro de uma fortuna, fora convidado a uma festa na casa do prefeito de Chicago. Lá cruzou com o chefe de polícia que, político, fazia questão de não tocar no caso do Crocodilo, da creche, pois sabia que o homem-morcego não se cansaria de dizer o que pensava.

Porém, mesmo trabalhando diariamente com o pior da sociedade, ele parecia totalmente versado à formalidade, ao baile de máscaras da aristocracia, mas mantinha distância da hipocrisia. Para tanto, ficava longe do prefeito, do chefe Carlson e de todos os acionistas da Wayne Corporation.

Foi assim, meio fugidio, no meio deste ambiente cru e frio, que ela surgiu exuberante em seu vestido vermelho, "com ares de Paris", pensou Wayne. Ela, com cabelos ruivos e uma boca voluptuosamente vermelha. Wayne nunca tinha apreciado tantas sensações ao conhecer uma única pessoa: sentiu sua boca úmida como se houvesse degustado um fruto maduro doce, um pouco ácido, como preferia. Sentiu sua pele arrepiar-se como sob o vento antes da neve cair e chegou ao auge ao ouvir o som da voz, um ronronar que em consonância com a música que tocava, um blues de Billie Holiday, fez com que ele só enxergasse a ela.

— Wayne? — ela lhe olhou com olhos verdes e brilhantes, em flerte.

— Sim? — ele não tinha por que esconder que queria entrar com ela no seu jogo, sem frases feitas, que de fato não impressionavam a ninguém.

— Sou Layla. Boa música e péssimos pares para dançar... — disse a voz de ronronar.

— Concordo, principalmente quando esperam você se virar para pintar um alvo nas suas costas. — disse, e sorriu irônico.

— Eu nunca baixo a guarda. — ela disse, e olhou nos olhos dele — Prefiro cuidar eu mesma de minha vida, mesmo contra a sorte do que diz aquele velho ditado: "médico, se fores capaz, cura-te a ti mesmo."

— Sempre acreditei que se não podemos ter alguém por nós, talvez conosco sim. — disse o galanteador detetive.

— Veremos, Wayne, mas só ao fim desta música. — então ela estendeu a mão e ele a seguiu em rodopios e passadas ritmadas, não uma música, a noite toda... noite afora.

Mesmo que muitas noites Bruce passasse longe de Layla, a trabalho, sempre havia um tempo de ficar juntos, de jantar, de teatro e, é claro, de amor. Suas conversas sempre acabavam em risos, não que fossem superficiais, mas sempre chegavam a um lugar comum, onde o riso sempre mora. Nem Wayne, nem Layla precisaram abrir o coração e seus segredos, não precisaram dividir o que eram, mas o que tinham era dos dois.

Assim se passaram quase um mês e, já no outono de 1949, uma certa tarde o chefe de polícia chamou Wayne, com pedidos de máximo sigilo.

— Wayne, falhamos. — os olhos inchados e a pele vermelha do chefe denunciavam o nervosismo — Você sabe que Valley estava cuidando de uma série de assaltos... não há prova de ligação, mas são igualmente insolúveis. — enquanto falava, empurrava o arquivo para o detetive — Seja quem for, atacou esta noite. Eu deixei Valley fora deste. Ele ainda não foi totalmente liberado pela corregedoria. — Wayne entendeu a indireta e olhou friamente o chefe, nos olhos.

— São obras de arte, papéis e dinheiro vivo, muito fácil de passar adiante. Valley não tem nenhuma pista, Bruce. — o detetive olha as fotos e olha as marcas deixadas em alguns vidros, fios e nos batentes de uma janela.

— Como garras.

— Como?

— Múltiplos cortes nos vidros e na janela, são assimétricos, foram feitos por uma garra de diamante.

— Mas todos os ladrões de Chicago usam diamante!

— Mas não para cortar fios e agarrar-se a paredes. — disse o detetive, mostrando algumas marcas fotografadas.

— Eu não sei como não soaram alarmes e como passou pelos guardas. — perguntou-se o chefe.

— Os guardas estavam distraídos... ele é leve e rápido... e inteligente, cuidou dos guardas e dos alarmes ao mesmo tempo... não sei como, mas foi assim.

Wayne, como de costume, saiu da sala sem dizer uma palavra deu a partida no seu negro Ford V8, rumo ao Art Institute of Chicago.

— Sou o detetive Bruce Wayne, da divisão de homicídios e roubos da polícia. — disse ao guarda da porta do Instituto. O lugar ficara fechado após o roubo.

— Olá, sr. Wayne...

— Me deixe falar com o sr. Novack, por favor?

— Mas... mas... — os olhos cinza de Wayne nunca deixavam dúvidas, eles diziam "não discuta, faça!" — Bem... já vou chamá-lo... — logo, o chefe dos guardas estava ali.

— Sr. Novack? — perguntou o detetive, sentado em um banco a admirar as belas pinturas.

— Diga lá, homem, não tenho o dia todo!

Wayne levantou e fez a sombra dos seus 1,90m sobrepujar a estatura do robusto chefe da guarda.

— Como é que ele distraiu o senhor e seu colega? — o homem, sem jeito, apenas coçou o pescoço — O ladrão. Como ele passou pelo chefe da guarda, mais três homens? — Wayne observava de longe o lugar de onde levaram a obra de arte.

— Era hábil. — disse Novack, meio constrangido e repreendendo seus subordinados, que ameaçavam falar, com gestos — Tinha algum paralisante ou coisa assim, nos imobilizou em segundos.

— Foi... paralisou... — disse o guarda da portaria; nisso, Wayne, que não parou de caminhar desde que começou a conversa, já estava em frente da parede na qual deveria estar o quadro roubado.

— "Nighthawks", de Hopper, 1942. — disse o detetive para si mesmo.

Naquela noite, Wayne ligou para Alfred, seu mordomo, e pediu para dizer a Layla que trabalharia a noite toda, para o infortúnio de seu desejo de vê-la.

Duas horas depois, o detetive espalhou todas as fotos dos crimes sobre sua mesa. Duas obras haviam sido roubadas antes de "Nighthawks". Um padrão: todos modernistas americanos. Havia também o roubo de dinheiro, do cofre da casa centenária da família Worthington, 300 mil dólares, dinheiro da diocese de Chicago, 97568 dólares; nestes, não havia padrão aparente.

As conclusões de Wayne eram: o ladrão era muito audacioso, todos os roubos ofereciam um desafio — guardas, alarmes, cães e muros altos. A questão não era só o valor do roubo, mas o desafio.

Wayne então olhou para as especificações dos alarmes e vidros de segurança, todos da Wayne Corporation. O detetive ligou para Alfred e pediu uma relação dos lugares em Chicago que usavam equipamentos de segurança da Wayne Corp. O mordomo assentiu o pedido e confirmou que levaria tudo para a departamento de polícia assim que possível.

Mas quando apenas a luz da escrivaninha de Wayne estava acesa na larga sala dos detetives, uma figura se aproximou, obscurecida, muito mais pelo rancor que pela pouca luz do ambiente. Era Valley.

— Ele deixou tudo com você, não é... — a face maltratada de Jean Paul Valley foi parcamente iluminada pelo abajur.

— Deixou. — Wayne olhou nos olhos de Valley e percebeu que não haveria por que perder tempo dizendo coisas de incentivo para seu colega, não com aquele ódio nos olhos dele.

— O ladrão... — a voz saiu truncada, as palavras saíram ressentidas — Eu não matei o Crocodilo por ódio. — Wayne então voltou a olhar Valley — Ele me atacou... — Wayne sabia que era mentira.

— Eu não posso conversar, Valley, e não quero saber de suas intenções. Os fatos bastam. — Valley cerrou os punhos e... nada. Deu as costas e saiu. O detetive acompanhou seu companheiro com os olhos até a saída.

Alfred teve de esperar pela abertura dos escritórios da Wayne Corp., no início da manhã, para conseguir todos os dados solicitados. Quando Wayne os teve em mãos, percebeu, primeiramente, que seus equipamentos de segurança não eram os mais vendidos, e que havia ainda dois lugares que poderiam ser roubados. Primeiro o Chicago First Bank — responsável por manter a metade da renda da cidade e a fortuna da maioria das grandes famílias — e, também, a mansão Wayne.

Naquele momento, Wayne deu prosseguimento aos devidos procedimentos e fez com que a segurança do banco fosse redobrada. No mais, só restava e desejava ir para casa e se deitar aos braços de Layla, tentar esquecer os assaltos, a polícia e Valley, que lhe atormentou a mente naquela noite.

Quando chegou em casa, com a manhã fria, atravessou toda a mansão. Alfred parecia ocupado e viu que sua bela companhia não estava no interior da casa; olhou pela janela e viu Layla, na piscina aquecida, nua. Wayne desceu as escadas do grande salão, caminhou para os fundos, mas o telefone tocou, obrigando-o a atender. De dentro da casa ele podia ver, através da porta de vidro, o rosto sorridente de Layla. No entanto, ao ouvir o chamado do telefonema, deu as costas à bela, para encarar as feras. Alfred viu seu mestre sair pela porta da frente e pela janela viu a exuberância de Layla.

No First Bank, arrombado e roubado, Wayne se deparou com os dois guardas de segurança; um com os olhos roxos, o outro com um vergão no pescoço. O detetive apenas parou diante dos dois e eles logo soltaram a língua.

— Sabe... ela era... quer dizer, ela sabia o que fazia... — disse um dos guardas.

— Foi isso, ela passou por homens, foi fácil.

Wayne olhou para os lados e tentou localizar o local do roubo.

— Ela? — perguntou o cavaleiro das trevas, friamente.

— É, ela parecia nua, ela nos paralisou... ela tinha alguma coisa naquela sacola... por que ela estava nua, se estava com uma sacola? — enquanto o guarda murmurava, o detetive chegava a frente do cofre. Apenas o miolo da tranca estava desmontado: limpo e rápido.

— A segurança extra não tinha chegado?

— Segurança extra?

Wayne olhou para um ou dois sargentos que estavam ali investigando e os mesmos se esconderam do ártico olhar do detetive.

— Nós nunca fomos informados deste reforço... — disse o guarda de olho roxo.

Wayne entrou no cofre e muita coisa faltava, mas não só dinheiro, mas papéis, títulos ao portador e hipotecas abertas (que dão direito ao portador de executá-las), ações liquidáveis de empresa da Wayne Corp. e outras... ele então parou, observou bem, e apenas os seus papéis haviam sumido. Tudo, então, fez sentido para o detetive, todos os lugares estavam guardados pelas empresas Wayne, todos os papéis eram dele, o caso ficara em suas mãos... ele, o melhor detetive de Chicago, deveria cuidar de seu próprio caso, como disse sua bela companheira quando se conheceram: "médico, cura-te a ti mesmo"... ele parou e pensou que o ladrão ou ladra só queria um desafio: ele.

— Layla. — Wayne correu para um guarda — Como era a ladra? Era ruiva, alta?

— Exato... como sabia?

O homem-morcego deixou o lugar, entrou em seu Ford e rapidamente estava na mansão. Quando entrou no grande hall, na parede Wayne viu a figura de um solitário homem, vista pela vitrina de num bar, realisticamente pintado em "Nighthawks" (*). Sobre a mesinha, um arquivo da polícia, uma ficha corrida, com a foto de Layla, mas o nome era Selina "Mulher-Gato" Kyle. Alfred estava desmaiado numa poltrona, com um copo de conhaque ao lado, conhaque com anestésico.

Kyle tivera tempo de executar todos os papéis, fazer dinheiro vivo. Enquanto Wayne estava no banco, ela levou tudo que era dele: sua fortuna e o resto da confiança que tinha na humanidade. Havia, ainda, um bilhete grudado no arquivo: "Que pena que foi você. — M. G. Kyle"

No mais, restava-lhe sentar e tomar um uísque, enquanto via seu apego pela humanidade se esvair, como sob as pedras de gelo no seu copo.


No próximo número: Wayne em Nova York e uma piada de matar de rir, literalmente.


:: Notas do Autor

(*) "Nighthawk" é uma expressão, em inglês, que significa notívago, uma das características de Wayne. voltar ao texto



 
[ topo ]
 
Todos os nomes, conceitos e personagens são © e ® de seus proprietários. Todo o resto é propriedade hyperfan.