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Super-Homem / Matrix - As Idades do Homem # 06

Por Fábio Fernandes

Homem Primata

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É um dia de nuvens em... em que ano você está? Você não sabe mais.

Você não sabe sequer se as nuvens que volta e meia passam diante dos seus olhos são de verdade. Seus sentidos não são mais confiáveis.

O que eles lhe dizem neste momento não é muito complicado: você está deitado num leito hospitalar, fortemente amarrado com correias de couro. O corpo está quase todo coberto por um pijama de tecido grosso e já gasto de tanto uso e tantas lavagens. Pelo menos está limpo, você pensa. Suas narinas captam o cheiro de desinfetante de pinho de marca vagabunda.

Esta parte é mais fácil. O que os seus ouvidos lhe dizem, entretanto, é outra coisa.

Palavras num idioma que lhe parece familiar, mas ao mesmo tempo estranho. Você lembra, sem saber por que, de séries de televisão que via quando criança em Smallville: Terra de Gigantes, Túnel do Tempo, e de uma pergunta que você e seu melhor amigo, Pete Ross, se faziam sempre: por que é que eles sempre falam inglês? Por que os gigantes falavam o mesmo idioma dos pequeninos? E como é que Tony e Doug, não importava o lugar onde o túnel do tempo os deixasse a cada semana, sempre conseguiam se comunicar com os nativos sem qualquer dificuldade?

— Ah, isso é fácil. — dizia Pete, sempre o mais esperto — Eles usam um tradutor universal. Igual ao de Jornada nas Estrelas.

— Mas em Jornada eles não usam tradutor universal. — você respondia, sem entender direito — Só o comunicador.

— Eles usam implantes. — Pete explicava paciente ao amigo não tão brilhante.

— Implantes? O que é isso? — você perguntava, ainda sem entender o significado das palavras.

— Dez miligramas de Haldol. Se o paciente continuar com os sintomas, nova sessão de eletroterapia amanhã.

Você não entende nada do que está sendo dito ao seu redor. Isso para você é grego. E, por falar em grego, você lembra das histórias da Mulher-Maravilha que costumava ler na adolescência. Aqueles cabelos encaracolados, aquele nariz, aquelas formas gregas que só George Pérez sabia desenhar. Diana é que era mulher de verdade. Lois Lane, por exemplo, aquela vagabunda que nunca lhe deu a menor confiança na redação do Planeta Diário? Lois Lane não era nada. Você preferia as mulheres dos quadrinhos. Adormeceu desejando Diana.

Você acorda num quarto pequeno mas limpo, todo branco, deitado numa cama que quase não dá conta do seu corpo. Percebe que não está mais amarrado. As correias de couro não são mais necessárias. Você está tão zonzo que mal consegue mover a cabeça.

Quando consegue (e parece que demorou uma eternidade), você vê o homem de branco ao seu lado.

Homem de branco castanhos verde dr. Smith não tem registro não tem registro não tem registro hahahahahahaha

Você só percebe que está rindo quando o homem de branco diz:

— Estamos de bom humor hoje, hein?

Então você consegue focar a atenção nele, e preenche as lacunas do seu pensamento. Homem de (jaleco) branco. (Cabelos) castanhos. (Placa de identificação) verde (no bolso). A placa diz "Dr. Smith". O "não tem registro" ficou por conta de Perdidos no Espaço. Grande série, essa. Uma de suas favoritas.

— Eu também gostava muito dessa série. — diz o médico. Você deve estar falando muito alto.

Mas, quando tenta mover os lábios para responder, não consegue emitir som algum.

— Descanse, rapaz. — o médico diz, pondo a mão no seu ombro — Daqui a pouco a Maggie vem com sua refeição, OK? Só não coma demais. — ele sorri amistosamente — Você precisa emagrecer um pouco, rapaz.

Mais tarde, na hora da sessão de terapia, quando passa pelo espelho no corredor, você percebe que a palavra "rapaz" foi gentileza do doutor.

Você é um velho.

Não, velho não; você está acima do peso (bem acima, você calcula uns vinte ou vinte e cinco quilos) e seus cabelos estão quase todos brancos. O rosto está vincado de pés-de-galinha. Você está acabado precocemente.

— Como estamos hoje? — o médico pergunta.

Você já sabe qual é a resposta que o médico deseja ouvir.

— Bem. — você diz. Mas ele sabe que você sabe. E não se convence. Rabisca alguma coisa na prancheta. E você volta para seu quarto.

Os dias passam devagar. Muito devagar.

Você já foi capaz de fazer cálculos mais rápido do que o computador mais avançado. Você já foi capaz de voar mais rápido que um avião.

Ou não?

Você não consegue mais lembrar como era. E o pior: não tem certeza se era mesmo assim. Se você já foi assim algum dia.

E não tem forças sequer para chorar de tanta dor.

Os dias passam devagar. Insuportavelmente devagar.

Você fica esperando que alguma coisa fora do normal aconteça. Que alguém invada o prédio e pegue você, que uma máquina assassina fora de controle tente matá-lo, que algum inimigo do seu passado ressurja, incapaz de se controlar, para se gabar de como finalmente, finalmente venceu você.

Mas nada acontece. O incrível é que absolutamente nada acontece.

A não ser as sessões de choque.

E então os dias passam ainda mais devagar. E com muita dor.

Mas tudo na vida passa. Até mesmo a dor. Num belo dia (pelo menos você supõe que seja um belo dia, pois o aquecimento interno do hospital foi desligado e você consegue andar pelos corredores sem agasalho), um enfermeiro o leva até a sala do dr. Smith.

— Como estamos hoje? — o médico pergunta.

Você sorri. E se espanta, porque o sorriso é espontâneo.

— Bem, estou bem. — e você se espanta mais ainda, porque percebe que é verdade. Você não sente mais dor. Sua cabeça não está mais nublada como antes.

Agora você sabe quem é. Você se lembrou.

Você é Clark Kent. Americano da gema, ou melhor, da torta de maçã. Born in the USA, como aquela canção de Bruce Springsteen de que você gosta tanto. Nascido e criado no estado do Kansas.

Você é um homem. E se orgulha disso.

Mas nem sempre foi assim. Houve um tempo em que você tinha vergonha de ter sido apenas um homem.

Não que isso importe agora.

— Hoje você realmente está bem, Clark. Estou muito satisfeito com a evolução do seu quadro clínico. — o médico diz, e faz uma coisa que você nunca havia visto antes. Ele dá um sorriso.

É um sorriso largo, que parece ter mais dentes do que é possível caber numa boca humana. Isso assusta você, mas você tenta não dar bandeira. Você está tão perto de ir embora. Não quer que um surto repentino de paranóia ponha tudo a perder.

O dr. Smith faz umas anotações em sua prancheta.

— Parabéns, sr. Kent. Você está liberado para ir embora.

Você vê algo mais naquele sorriso e na maneira como ele pronuncia seu nome, mas deixa de lado. É apenas impressão sua.

Você está livre.

Do lado de fora do hospital Bellevue, a vida parece normal. Tudo está no seu lugar, graças a Deus, graças a Deus. Você se pega agradecendo ao deus da religião na qual seus pais o educaram — não sem uma certa rigidez. Afinal, não se vive numa cidadezinha do interior impunemente. As tentações eram grandes. E seu pai, o velho Jonathan, temente a Deus, estava sempre lá para garantir que você não caísse vítima delas.

Como quando ele pegou você e Lana no celeiro.

Naquele dia, cada um ganhou o castigo que mereceu.

Da surra que levou de Jonathan, você guarda até hoje nas costas as marcas do chicote que ele costumava usar nos cavalos da fazenda.

Da surra que Lana levou do professor Lang, traumatismo craniano, lesão na medula e rompimento do baço. Trinta e um dias de coma. Você não foi ao enterro.

Você teve que ir para outra cidade. Não havia prédio em Smallville suficientemente alto para o que você tinha em mente.

Quando você chegou em Metrópolis, os pilares gêmeos ainda estavam sendo erguidos. Então você escolheu o hotel mais inconspícuo e barato para realizar seu grande sonho de liberdade.

Pagou adiantado uma semana no Billion Dollar Hotel (nome irônico para um muquifo caindo aos pedaços, um nada orgulhoso remanescente art-déco dos loucos anos 1920 para um bando de loucos e viciados dos anos 1990). Subiu até seu quarto (o mais barato, o 101), deixou a mochila com suas poucas roupas e subiu até o telhado do prédio. Assoviando o tempo todo uma velha canção de Elton John.

Fly away, Skyline Pigeon.

Mas, antes que você conseguisse realizar seu sonho, as pessoas que estavam na laje do prédio (viciados, todos, fumando seus baseados nojentos, anti-americanos), essas pessoas impediram você de realizar seu sonho. Você não se jogou do prédio. Você não voou.

Você saiu de lá direto para um sanatório.

Mas tudo na vida passa. Em alguns meses, você acabou tendo alta. Sua formação universitária (ainda que interrompida) lhe permitiu arrumar uma vaga de estagiário no Planeta Diário. Aos poucos, você conseguiu uns frilas na seção de cultura — cobrindo convenções de quadrinhos e coisas do gênero. Coisas bem de nerds gordos e com óculos fundo-de-garrafa. Fanboys.

Coisa que você não é, claro. Você nunca foi assim. Só porque você não gostava muito de fazer ginástica? Só por causa da sua miopia, que nem era tão grande assim (tudo bem, havia o astigmatismo, mas isso era um mero detalhe)?

Você no fundo queria ser um grande repórter, um repórter investigativo como Lois Lane, a grande profissional do jornalismo norte-americano. A mulher que acompanhou a primeira guerra do Qurac e expôs ao mundo as torturas que os soldados americanos impunham aos prisioneiros. A mulher que já ganhou dois Pulitzer e está a caminho do terceiro.

Não é só isso que está a caminho, você percebia quando a via entrar na redação diariamente, a barriga cada vez maior do segundo filho de seu casamento super-bem-sucedido com o ex-astro de futebol americano e atual editor de esportes do Planeta, Steve Lombard. O que foi que ela viu nesse sujeito, afinal?, você se perguntava enquanto tentava, com muito custo, digitar duas mil palavras sobre a última convenção de quadrinhos de San Diego.

Quando você chegava em casa — um apartamento pequeno e quase sem móveis, no bairro pobre do Queens — tudo o que fazia era pegar o TP mais novo ou um pocket de ficção científica, ligar o aparelho de som, encher a mesa da sala de potato chips e diet coke e ficar lendo as aventuras de seus heróis prediletos. E ouvindo James Blunt sem parar.

You´re beautiful. You´re beautiful. You´re beautiful, it´s true.

Voce nem sentiu a depressão entrar. Só percebeu que estava mal quando os paramédicos chegaram. Quando, depois de alguns dias sem dar as caras no Planeta, o editor-chefe mandou Jimmy, um estagiário que por acaso morava perto de você, ver se estava tudo bem. A caminho do pronto-socorro mais próximo, um dos paramédicos contou que Jimmy ligou para 911 porque tocou a campainha muitas vezes e ninguém atendeu, mas que, depois de um tempo, ouviu você gemer.

Você só percebeu que havia cortado os pulsos muito depois.

Mas agora tudo isso ficou para trás, junto com a fachada do hospital.

Porque agora você sabe — não, você tem a mais absoluta certeza — que não é Super-Homem. Nunca foi. O último filho de Krypton não passa de uma ficção, um personagem de histórias em quadrinhos. Uma criação sua.

Só agora você percebe que está realmente curado.

Você sai do hospital cantarolando Blue Skies. Nothing but blue skies from now on. Isso é o que importa agora.

Você está tão compenetrado na sua imitação barata de Cole Porter cantando Irving Berlin que nem percebe o homem no qual esbarra. Imediatamente você se vira para pedir desculpas, com a humildade química de quem passou tempo demais dopado. Quase não olha para o sujeito, mas é difícil resistir: o camarada é um homem alto e esbelto (muito diferente de você), vestindo um impecável terno Hugo Boss preto e óculos escuros cuja marca você desconhece, mas que certamente não foi comprado num camelô. É um homem magro, com as maçãs do rosto afundadas e um nariz um pouco grande demais. Você pensa que um sujeito desse tipo o escorraçaria, mas não: ele abre um sorriso. Com dentes demais.

— Desculpe, moço. — você se apressa em dizer — Foi sem querer.

— Não foi nada, sr. Kent. — diz o homem — Não foi nada. — e lhe dá as costas, afastando-se como uma miragem.

Por um segundo você acha estranho o fato de ele saber seu nome. Apenas por um segundo. Pois em seguida, você esquece o incidente e o homem de terno preto no qual esbarrou. E continua caminhando, descendo a rua de uma metrópole no ano de 1999. É um ano bom, tem tudo para ser. Você torce para que ele dure para sempre. Como se essas coisas fossem possíveis.




 
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