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Super-Homem / Matrix - As Idades do Homem # 05

Por Fábio Fernandes

Homem de Papel

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É um dia eterno. Um sol vermelho preenche metade do horizonte.

Grande Rao.

A noite acabou para sempre.

Ao seu redor, robôs servidores flutuam, cuidando de você, medindo sua pulsação, injetando fluidos vitais em seu sangue, servindo alimentos e bebidas. Você reconhece Kelex e Kelor, seus servidores particulares desde que você atingiu a maioridade (ainda na infância, como todos os habitantes de Krypton) e pôde morar completamente isolado de seus pais e de todas as pessoas (como é o costume no mundo do sol vermelho).

Você perde a noção do tempo mais uma vez. Passa a maior parte do tempo dormindo. Ocasionalmente, ouve pessoas ao seu redor conversarem a seu respeito. Mas pode ser que você esteja sonhando.

Você aprende a medir o tempo pelo deslocamento da gigante vermelha no céu ligeiramente esverdeado. Horas parecem se passar, mas o implacável Rao não se põe. Permanece no firmamento, visível o tempo todo através da janela panorâmica que parece percorrer toda a extensão do aposento onde você se encontra. Um aposento grande, porém quase despido de mobiliário: não há nada ali a não ser almofadões sobre os quais você se reclina (de onde está, você não consegue ver, mas desconfia de que na verdade eles se apoiem sobre alguma espécie de campo antigravitacional).

Quando o sono mais uma vez começa a chamá-lo para suas profundezas, — para as quais você não quer ir, por medo de que também esta realidade não seja a definitiva — uma forma se aproxima à sua direita. Você vira o pescoço bruscamente e sente dor. A forma se abaixa e o encara.

Não é Kelex. Nem Kelor. É uma kryptoniana. Ela não é um dos três que você viu de relance antes de desmaiar novamente, mas você a reconheceria em qualquer lugar, mesmo sem o traje de contenção e a tiara cerimonial dourada.

É Lara.

— Mãe? — você pergunta, hesitante. Seus olhos se enchem de lágrimas sem que você queira. Você não se lembra de ter visto sua mãe pessoalmente nunca em sua vida. A voz dela é doce, ainda que com uma tonalidade ligeiramente metálica (será a pressão barométrica?, seu raciocínio científico o leva a perguntar. A sensação é de que o ar de Krypton é um pouco mais rarefeito que o da Terra. Porcentagem menor de oxigênio, outros elementos residuais, talvez nitrogênio, em maior escala que na Terra... mas de que adianta? Você não sabe a resposta):

— Repouse, filho de Jor-El. Você precisa, depois de tanto tempo imerso na câmara de simulação.

— Câmara de simulação? — sua voz sai fraca, meio esganiçada, como se você não a usasse há um bom tempo.

Antes que Lara possa responder, subitamente um homem se materializa ao lado dela. Em pé, rígido. Você o reconhece como um dos três que apareceram antes.

— Você não deveria estar nesse aposento, filha de Lor-Van. — diz o homem de feições duras.

O homem é Jor-El.

— Estou aqui para verificar se Kal-El está bem. — ela diz.

— Os servidores podem fazer melhor que nós. — retruca o holograma.

— Você se faz necessária em seu próprio módulo habitacional. — diz o homem rígido (você sente vontade de chamá-lo, mas ele o ignora solenemente) — Todas as mentes de Krypton são necessárias neste momento de impasse. Se cada mente colaborar com um fragmento de cálculo, as possibilidades de uma vitória a curto prazo sobre Rann e Thanagar são de...

— Rann? Thanagar? — você pergunta. O que os planetas de Adam Strange e Katar Hol têm a ver com isso?

Só então o homem rígido volta seu olhar holográfico para você. Um olhar de quem não gostou nem um pouco de ser interrompido.

— Descanse, Kal-El. — ele diz. Não é um pedido.

— Você ainda está cansado e confuso por tudo o que passou. — Lara tenta amenizar a situação.

— Os servidores já estão consertando o defeito na câmara de simulação. — diz Jor-El — Em breve você voltará à câmara e continuará a nos fornecer os dados de que precisamos para combater o inimigo. Mas, por ora, sua mãe tem razão. Repouse.

Você sente uma necessidade incontrolável de fechar os olhos. Não há mesmo outra coisa a fazer.

Quando você acorda, Rao não está mais no céu. Ao invés disso, estrelas brilham ferozmente no céu kryptoniano. Um aglomerado de estrelas.

Você sempre pensou que não havia noite em Krypton. E que Krypton ficava em outra galáxia. Mas você não tem mais certeza de nada. Por tudo o que você sabe, seu planeta natal pode ficar próximo ao centro da galáxia.

E Thanagar? E Rann?

Está havendo uma guerra? Mas se esses mundos ficavam tão distantes... até onde você sabia, depois das catástrofes que assolaram Krypton milênios antes de seu nascimento, seu mundo natal se isolou, perdeu o contato com suas colônias, como Daxam, e com outros mundos. Os kryptonianos se tornaram um povo pacífico e muito avançado tecnologicamente, a ponto de retirarem o máximo de energia de um mundo praticamente exaurido de recursos, e portanto de nenhum interesse para uma possível invasão ou dominação de fora.

Você não tem mais seu super-intelecto, mas a lógica que comanda seu raciocínio continua intacta. E ela lhe diz que só há uma coisa a fazer para eliminar seu estado de confusão mental.

— Kelex. — você chama o servidor, que há tantos anos trabalha para seu pai. O robô de um historiador certamente deve ter muitos dados referentes à cronologia de seu planeta armazenados em seu banco de dados — Tenho algumas perguntas a fazer.

O robô flutua à sua frente e aguarda.

Quando Kelex acaba de exibir as informações que você pediu, Rao já está elevado no horizonte.

Você pondera o que viu. Não é fácil.

No ano de seu nascimento (por incrível que possa parecer, você se dá conta de que não consegue lembrar qual a sua idade pelo padrão de contagem kryptoniano — pelo padrão da Terra, isso foi há trinta e cinco anos), a facção política Zero Negro, numa tentativa desesperada de tomar o poder em Krypton, quase destruiu o núcleo do planeta. Felizmente, as forças de defesa do planeta conseguiram deter o ataque e prender os principais líderes da facção, graças a um projetor inventado pelo seu pai, em um universo de antimatéria denominado Zona Fantasma.

Infelizmente, isso não foi o bastante.

Cinco anos atrás (ainda em termos da Terra, você está tendo dificuldade em se concentrar e pensar como um kryptoniano), o Zero Negro voltou a atacar. Num atentado sem precedentes na história de Krypton, homens com armaduras contendo bombas nulificadoras simplesmente varreram a cidade de Kandor do planeta.

As bombas, descobriu-se mais tarde, haviam sido fabricadas com enésimo, uma substância só encontrada no mundo de Thanagar. E as sondas orbitais de Krypton detectaram, segundos antes da explosão que destruiu Kandor, um pulso de teleporte cuja origem não foi possível descobrir, mas os elementos residuais não deixavam dúvidas: o teleporte (provavelmente dos homens-bomba) foi executado através da tecnologia de raios zeta — tecnologia criada nos laboratórios dos supercientistas de Rann.

Então a guerra foi declarada.

Desde então, os kryptonianos têm trabalhado incansavelmente em sistemas de defesa cada vez mais eficientes. E também, claro, no desenvolvimento de armamentos que possam fazer frente ao poderio militar thanagariano e à superciência de Rann.

Uma das — muitas — contribuições de seu pai para essa guerra foi a criação de uma versão aperfeiçoada das câmaras matriciais onde são gestados os kryptonianos. Essa câmara especial serve como um simulador para que um kryptoniano adulto seja inserido nela e possa viver em seu interior indefinidamente... e, dependendo do programa rodado na simulação, ele pode viver até mesmo sem desconfiar de que está imerso em um mundo irreal.

Foi o que aconteceu com você.

Você ainda está perdido em seus pensamentos quando o holograma aparece à sua frente. Em pontos diferentes do aposento, Jor-El, Lara e dois outros kryptonianos — mais altos, fortes e severos que seu pai — se materializam, os olhos fixos em você.

— Você consultou a base de dados da guerra. — diz um dos kryptonianos desconhecidos. É o mais alto de todos, e tem um queixo quadrado que o torna quase inumano. Este pensamento quase faz você rir: Kryptonianos não são humanos. E, por extensão, você também não.

— Sim. — é a sua resposta — Eu precisava lembrar.

— O passado é irrelevante. — diz o outro kryptoniano que você não conhece. Agora você repara bem nele, e percebe que, apesar de alto e forte, ele é bem mais velho que os demais — O importante é conhecer o presente para dominar o futuro.

Você pensa em se levantar para ficar no mesmo nível deles, mas ainda está fraco demais.

— Fique onde está, filho de Jor-El. — diz o de queixo quadrado — Os servidores cuidarão de você até que esteja pronto para retornar à câmara de simulação.

O cansaço ainda é forte, mas você não está mais tão confuso quanto antes. Não para tomar uma decisão.

— Pai, mãe, eu sinto muito. — você consegue articular, lutando contra as lágrimas que ameaçam escorrer pelo rosto — Eu não posso mais. Eu não farei mais isso.

— Como? — a voz metálica de Jor-El ecoa furiosa pelo aposento — Você faz alguma idéia do que sua recusa representa?

— Você não tem o direito de recusar, filho da casa de El. — diz o velho.

— Cyr-Us tem razão. — seu pai confirma — Você aceitou de bom grado esta incumbência. Disto você não se lembra?

Você não lembra.

Como se já esperasse isso, Jor-El faz um gesto para um ponto além do transmissor da imagem holográfica. E o que você vê em seguida não lhe dá margem a dúvidas.

A imagem mostra você, com o mesmo uniforme dos kryptonianos — o mesmo traje de contenção corporal com o qual todos são dotados desde o nascimento. Desde a saída de sua câmara matricial.

Que se parece bastante com o grande ovóide do qual você saiu e que agora aparece no holograma, translúcido, sobre um pequeno pedestal metálico.

Aguardando seu ocupante.

— Criei esta câmara matricial especial com o único propósito de treinar você, Kal-El. — diz seu pai no flashback — Dentro dela, você será apresentado a uma simulação perfeita, uma matriz que criará toda espécie de situações possíveis de combate. Você assumirá uma nova identidade, aprenderá a pensar como um alienígena, conhecerá outros costumes.

— Serei um thanagariano? — você pergunta na imagem. E você agora se espanta com a expressão de nojo que fez naquele instante — Ou um supercientista de Rann?

— Nenhum dos dois. — diz o queixo quadrado — Você será um ser totalmente diferente. Criamos um mundo inteiramente novo. Algo que nem toda a astúcia de Thanagar e a criatividade de Rann poderiam imaginar.

— O general Zod supervisionou pessoalmente a criação desta simulação. — Jor-El acrescenta. O homem forte ao lado dele assente, sério.

"Então esse é Zod?" — você se pergunta.

— Criamos um mundo perfeito. — ele diz — Cruel, mortífero, repleto de armadilhas e engodos. Onde você será como um deus. E como tal agirá, agindo com justiça para o povo e castigando os inimigos. Observe bem. — e, subitamente, um holograma imenso aparece à frente de sua imagem tão jovem. O efeito de uma imagem virtual dentro da outra só não causa estranhamento porque as palavras que Zod profere a seguir cortam completamente essa sensação — Veja o mundo que criamos. O planeta Terra.

Quando o holograma é desativado, você está cansado demais para dizer qualquer coisa. Sua mãe parece entender isso. Mas, antes que você diga alguma palavra, a imagem dela desaparece. Assim como a dos outros.

Finalmente só, você fecha os olhos. Precisa recuperar as energias para decidir o que fazer.

Mas o sono lhe é negado. Você ouve passos. Sua mãe retorna.

— Meu filho. — ela diz, a voz embargada.

— Mãe. — você olha para ela, suplicante. Tem vontade de estender as mãos e pedir um abraço, mas para os kryptonianos isso equivale a um pecado mortal. Você sente vergonha por ter sequer pensado nesse gesto — Mãe, eu não sei em que acreditar. Não sei mais. É tudo muito confuso.

— Você passou tempo demais dentro da câmara matricial. — ela diz, agora sem conseguir esconder as lágrimas — Eu temia que isso acontecesse.

— Ele estava ciente dos efeitos colaterais. — diz Jor-El, e o tipo de emissão da voz faz com que você se dê conta de que a imagem que está diante de você não é um holograma. Seu pai está no mesmo aposento que você.

— Isto não o isenta de sua responsabilidade para com Krypton. — e você percebe que Zod também está presente no recinto.

Sem que mais uma palavra seja dita, Kelex e Kelor aparecem. Seus manipuladores se estendem e seguram as extremidades do que, agora você percebe, não é um campo antigravitacional, mas um colchão comum.

— A câmara de simulação foi consertada. — diz Zod — Você voltará agora.

— Não! — você grita, a voz bem mais forte do que no primeiro dia — Pai! Mãe! Por favor!

Você vê a expressão de dor no rosto de sua mãe, e algo que, por uma fração de segundo, parece tristeza nos olhos de Jor-El. Mas eles não dizem nada.

Você ainda tenta se debater, mas em vão. A câmara ovóide subitamente se abre — se abre não, é mais como se seu topo se derretesse como uma vela, só que em velocidade acelerada — e você vê uma série de cabos, conexões e um líquido esverdeado no interior do ovo.

Você entra na câmara matricial. E sabe que será pela última vez.

A consciência retorna num choque. Você sente dor.

As roupas — porque você está vestido — são ásperas, e causam dor e irritação ao contato com a pele. Mas você não consegue sequer se coçar.

Você está amarrado.

Você está deitado e amarrado a uma cama. A vista turva. Tudo branco ao seu redor.

— Clark! — uma voz forte e máscula o chama por um nome que há muito tempo não era ouvido — Acorde, Clark. Você precisa acordar.

Você abre os olhos e vê à sua frente figuras ligeiramente indefinidas, como se fossem hologramas. São dois homens e uma mulher. Figuras altas e esguias, vestidas com jalecos brancos.

Mas não são hologramas. São médicos.

Um novo choque percorre seu corpo. Você estremece todo, a cabeça lateja, o corpo dói insuportavelmente. E você tem a aguda consciência de que isso não pode ser uma simulação, nem mesmo uma simulação defeituosa.

A Terra não era uma invenção kryptoniana, afinal. Ela existe. E você está nela. Nos Estados Unidos. Internado numa instituição psiquiátrica.


Continua.




 
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