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Por
Dell Freire
Entre
a Cruz e a Suástica
Parte I
Carlyle desce as
escadas com passos largos, de dois em dois degraus, a heroína
ainda fazendo efeito em cada mililitro de seu sangue. Sua cabeça
raspada, as roupas largas e a tatuagem de um Donald perigosamente
armado no braço esquerdo parecem abrir caminho mais facilmente
entre os ingleses e seu andar irritantemente fleumático.
Ele está sujo e parece agitado depois de sair da clínica
com o resultado de seu teste HIV; uma de suas ex-namoradas está
morrendo e seu coração tremeu com a idéia
de estar infectado. Sua ansiedade lhe fez passar por mais agulhadas
para coletar sangue e, inseguro, fez um desnecessário teste
de esperma pra ter certeza de que não tinha nada.
Samael, seu velho amigo Samael, riu quando soube que seu amigo
escocês tinha que bater punheta num vidrinho.
Pense na Rainha-Mãe em seus 101 aninhos disse
seu amigo, há alguns dias, gesticulando como se estive
se masturbando Vai gozar rapidinho.
Filho da puta! Um homem de sobretudo, vítima
de um esbarrão de Carlyle no meio da rua, xinga o jovem
junkie ao ver seu maço de cigarros espalhados pelo
chão .
Foda-se! Carlyle lhe mostra o dedo médio,
efetuando o clássico gesto, voltando a correr em seguida.
Ingleses filhos da puta...
Aos 60 anos, uma
nova vida e uma nova pátria. O lenço retira o embaçado
de seus óculos, enquanto sua mão envelhecida pressiona
vagarosamente o pano; nunca iria se acostumar com a miopia. Com
a porta de seu estabelecimento aberta, sua visão ligeiramente
turva olha a rua. Londres não é uma cidade pra se
amar. Nas poucas vezes que estivera aqui, sentiu um certo frisson,
um arrepio na espinha e como se seu sangue começasse a
ferver. Bem parecido com sua primeira vez, com uma prostituta
em Berlin.
Sim, Londres era uma puta bem pouco confiável para Ottomar
Berzig, um velho comerciante de antiguidades. Não poderia
exigir amor, nem esperar por palavras de carinho. Com um pouco
de sorte, teria um rápido afago e um sorriso calorosamente
falso.
"Mulheres, putas ou não, e cidades, européias
ou não, nunca são confiáveis", pensa
Berzig, enquanto fecha a porta do seu estabelecimento e se prepara
para encerrar o dia de trabalho.
A porta é fechada com duas voltas nas chaves e o trinco
acima é passado; lembranças de violência passeiam
rapidamente em sua mente quando ele se encaminha para trás
do balcão. Distraidamente, seus olhos se voltam para uma
foto emoldurada com ele uns 25 anos mais jovem, um pouco mais
robusto e o rosto mais redondo, ao lado de uma velha senhora que
iria mudar toda sua vida. Seu nome era Katarina Olympia, princesa
da antiga família real romena e herdeira do Conde Drácula.
Seus pensamentos são interrompidos com as batidas sucessivas
na porta. Com um sinal, Berzig indica que o expediente está
encerrado. O estranho visitante mexe na maçaneta, expressando
urgência, enquanto seus lábios soltam um palavrão
lido pelos olhos experientes do comerciante. O alemão abre
a porta.
Senhor, volte amanhã!
E perder o meu dia? ele entra calmamente na loja
Você é Ottomar Berzig? Sou John Constantine...
Fiquei de vir ontem, mas tive uns probleminhas, umas noites de
sono meio mal dormidas... Você não entenderia mesmo...
Sr. Constantine, não me parece ser exatamente a
pessoa que eu esperava.
Por quê? os olhos rondam a pequena loja, observando
algumas peças amontoadas em um canto, tapetes enrolados,
a poeira permeando uma pequena coleção de livros
antigos.
A peça que procura é bem cara, sr. Constantine
o comerciante novamente tranca a porta, em um misto de
excitação e medo. Estou realmente pedindo
um valor abaixo do legítimo, mas ainda assim duvido que
possa levá-la.
Não avalie o peixe pelo jornal em que ele está
embrulhado, velho. Se não se importar com a origem do dinheiro
que vou te passar, acredito que possamos fazer um bom negócio.
Mas me mostre logo a peça.
Um momento.
Com os olhos cobiçosos com a esperança de obter
um bom negócio, o alemão entra por um pequeno quartinho
e demora por alguns minutos. Aproveitando a oportunidade, o mago
avista a foto emoldurada do comerciante. Como a informação
no ramo ocultista é uma moeda de raro valor, Constantine
buscou conhecer a história recente do velho.
A foto mostra o comerciante e a princesa ladeados. A amizade da
herdeira de Drácula foi tanta que Berzig se tornou seu
herdeiro direto após sua morte, tendo direito inclusive
ao título, o que o faz atender agora pelo nome de Ottomar
Rodolphe Vlad Drácula. Entre as propriedades que herdou
com o fim do bloco soviético, estão o castelo e
a propriedade rural de 32 acres existentes na antiga Alemanha
Oriental.
25 anos...
O quê?
Essa foto já tem uns 25 anos, sr. Constantine
o comerciante retorna, segurando uma lança de aproximadamente
dois metros, recoberta totalmente em panos. Se imagino
que buscou se informar a meu respeito, como fiz com o senhor,
conhece bem a minha história.
Herdeiro direto de Conde Drácula com um ar
ligeiramente entediado, Constantine relembra alguns dados conseguidos
Vindo de uma antiga família de antiquários
alemães, sua amizade com a velha princesa lhe rendeu uma
boa renda após a morte dela.
Nada que eu possa desfrutar, pois uma estranha notoriedade
me persegue seus olhos ficam um pouco marejados, enquanto
coloca a lança sobre o balcão. A violência
nazista me obrigou a fugir da Alemanha e a me refugiar na Inglaterra.
Com um gesto apontando o artefato, o mago sorri:
Talvez possa me fazer um abatimento se essa coisa me causar
a mesma infelicidade.
E a parada
é certa? os olhos de Carlyle não deixam de
estranhar o comportamento incomum de seu amigo.
Não tem erro. Vai ser divertido, você vai
ver. Um pouco de violência, terror espalhado pela cidade
de Londres; vai ser algo nunca experimentado. Você vai ver
o braço frio de Samael é colocado sobre o
ombro do amigo. Sinto que você tem muito a oferecer
à nossa causa.
Um calafrio percorre a espinha de Carlyle, enquanto ele observa
o quarto onde está. Há uma bandeira nazista, alguns
móveis virados de ponta cabeça, um casal de jovens
arianos se drogando no chão e uma cadeira em que uma imagem
humana está coberta por um imenso pano negro. Carlyle aproxima-se
e quase retira o pano, quando é interrompido pelo amigo.
Deixe isso quieto. É um artefato muito importante
pra nossos mestres e não gostaria que eles ficassem furiosos
com você mesmo antes de conhecê-los. Apesar de aqui
hoje estar completamente vazio, nossa tropa junta pode fazer um
grande barulho.
Não sabia de suas tendências nazistas, Samael.
Não é só a ideologia que está
em jogo, amigo. É sangue. A pureza do sangue conseguida
através de um novo caminho nazista. Mas vai compreender
isso melhor quando estiver sua iniciação estiver
completa, meu doce neófito. Ou vai desistir?
Estou nessa com você. Como sempre.
Ótimo.
As mãos de Samael apertam os braços de seu amigo
escocês. Seus olhos hipnotizantes impedem qualquer reação
do garoto, cuja pulsação transmite mais ansiedade
e calor para seu predador. Um par de presas mortais se desenvolve
em Samael. Carlyle fecha os olhos, aceitando o inevitável
e querendo que tudo acabe logo.
Antes de desmaiar, ele vê em seu delírio a imagem
de um homem em roupas romanas caindo violentamente sobre um leão
e, com as mãos, abrindo sua bocarra até quebrá-la.
Quando o romano se vira, com surpresa ele percebe que o homem
é ele próprio, agora ovacionado por uma platéia.
Vozes gritando Heil, Hitler, misturadas a acordes clássicos
de Wagner com batidas eletrônicas dominam a mente cheia
de heroína do jovem iniciado.
Ele cai no chão, ligeiramente enfraquecido. Cai como homem,
mas ergue-se como vampiro.
Bosta...
Desculpe-me.
Não tem problema passando as mãos
no capote, John Constantine tenta limpar a sujeira do café
derramado por Berzig. Conseguiu confirmar o depósito?
Sem problemas, sr. Constantine... Apesar de não
querer saber por que meios escusos o senhor conseguiu esse dinheiro,
tenho muita curiosidade em saber qual seu interesse nessa lança.
Isso é problema meu. Mas é sempre bom ter
uma peça fundamental para a história da humanidade.
Muitos acreditam que essa lança pertenceu a um soldado
romano e que ela perfurou Cristo na crucificação.
Tanto Alexandre quanto Hitler a portaram, acreditando que em seus
princípios mágicos poderiam conseguir a vitória.
O senhor, se é o mago que muitos dizem ser, deve fazer
melhor uso dela do que eu. Mesmo que seja apenas para repassá-la
para a frente por um preço maior.
Olha que não seria má idéia
com um meio sorriso, Constantine pega a lança hermeticamente
embrulhada, agradece ao comerciante e dirige-se para a porta.
As luzes se apagam.
Mas que diabos? berra Constantine.
Em meio a escuridão repentina, um grupo de pessoas invade
a loja. Pego de surpresa, Constantine recebe uma seqüência
de chutes e golpes de bastões de baseball e, sendo jogado
ao chão, adota uma posição fetal, tentando
proteger a cabeça. Um soco inglês atinge em cheio
o rosto do comerciante, que desmaia imediatamente.
Carlyle, pegue a lança! berra Samael.
O jovem escocês aproxima-se de Constantine, que o atinge
no saco com um rápido pontapé, fazendo-o dobrar-se
de dor. A idéia do mago é correr em desabalada carreira,
mas é surpreendido por um violento puxão em seu
sobretudo.
Judeu filho da puta! Verme! a seqüência
de golpes agressivos realizada pelos jovens neo-nazistas contra
o comerciante judeu é ininterrupta.
Você não é um homem comum...
diz Samael, encarando Constantine diretamente.
E nem você, vampiro desgraçado. Reconheço
vocês pelo mau cheiro.
Não me disse quem é, desgraçado
as mãos ligeiramente embranquecidas pressionam o pescoço
do mago.
Como resposta, Constantine joga a cabeça contra o nariz
do vampiro, fazendo apenas surgir um filete de sangue no rosto
inexpressivo do monstro.
Chega! Eu vim buscar a lança! Diz o vampi-nazista
que, com uma das mãos, retira o artefato e com a outra
joga o mago violentamente para o lado Vamos!
Com o corpo abatido pela agressão, John Constantine se
aproxima lentamente do comerciante, constatando que o velho ainda
respira. Ele se ergue, sem uma direção completamente
definida, olhando para os lados. Aproxima-se de um telefone e
faz uma ligação, o corpo inclinado sobre o balcão:
Alô!
a voz sai com dificuldade Chegou a hora de eu cobrar
aquele favorzinho... Preciso que localize um pessoal pra mim.
Não, não esse tipo de gente. Na verdade, são
neo-nazistas.
Enquanto observa
a cidade de Londres do alto de um prédio, Union Jack revê
alguns dos novos rumos que sua investigação está
levando. Segundo seus informantes, o aparente conflito entre grupos
étnicos e nazistas pelas ruas de Londres parece eminente.
Sua única alternativa é interferir de forma rápida.
O uniforme agora já não pertence ao homem que o
envergou na segunda guerra, Lorde Falsworth. Por trás da
máscara está Joey Chapman, jovem amigo da nobre
famíia e um homem que imprime seus conceitos anarquistas
à aura patriótica que o Union Jack possui.
Quando salta do prédio, em movimentos acrobáticos,
até o chão, seus pensamentos ainda estão
presos aos acontecimentos que estão por vir. Ele sabe que
sua participação, daqui para frente, pode evitar
tumultos e tragédias desnecessárias.
John Constantine
está diante da casa em que se escondem os homens que roubaram
a lança, fumando um cigarro enquanto pensamentos confusos
lhe incomodam a mente. É bem verdade que seus contatos
permitiram um grande atalho, mas o que fazer numa hora dessas?
Não gosta de armas, não possui algo que se possa
chamar de técnicas de luta e qualquer invasão àquela
altura poderia ser um pequeno desastre.
Sente um certo frio na espinha quando percebe passos distantes.
Ele olha para trás e nada vê, voltando de novo sua
atenção para o abrigo dos vampi-nazistas. Novos
passos são ouvidos. Definitivamente, Constantine não
está sozinho. Um negro gigantesco, de óculos escuros
e armado até os dentes com uma parafernália que
ele não sabe definir com certeza o que é, aparece
em sua frente como se fosse um fantasma.
Se não tem nenhum vínculo com os homens naquela
casa, é melhor sair daqui o quanto antes. Eles estão
condenados a morte.
É mesmo? E por quem? Posso saber?
Por mim o rosto ameaçador de Blade, o Caça-Vampiros,
aproxima-se do mago.
Bem, acho que esse vai ser o começo de uma bela
amizade... Aceita cigarros?
No próximo número: Enquanto Blade e John
Constantine dão início a uma convivência nada
amigável, conflitos políticos e brigas raciais tumultuam
Londres. E os nomes por trás do comando Vampi-Nazista são
revelados.
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