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Doutor Estranho e Hellblazer - O Estranho e o Louco # 01

Por Alexandre Mandarino

Boston, Estados Unidos. Uma velha casa de estilo vitoriano. A mulher conhecida como Topaz acorda gritando no meio da noite. Como em várias outras ocasiões, não tivera um simples sonho. Dona de poderes que nem mesmo ela compreende, Topaz teve mais uma de suas visões. E, como na maioria das outras vezes, só resta à ocultista imaginar o significado do que viu. Sentada em sua cama, suando sem parar, ela só consegue pensar em uma palavra, que por algum motivo lhe causa náusea e horror: "o livro, o livro"...

O Estranho e o Louco

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Al Alib fez seu camelo parar, saltou na areia do deserto e bebericou um pouco da água morna contida na moringa. Seus três companheiros fizeram o mesmo. Um deles lhe perguntou:

— E agora, o que vai fazer, uma vez que a morte de seu pai está vingada?

— Não sei... Pensei que fosse me sentir melhor, mas nenhuma morte tem significado, nem mesmo aquelas que nos convêm.

O silêncio tomou conta das dunas árabes por longos minutos. Um dos homens olhava com curiosidade para suas próprias mãos, que haviam provado o gosto de sangue após 25 anos livres dessa experiência.

— Vamos seguir viagem. Logo vai escurecer e não estamos preparados para o frio — disse Alib, temendo que o silêncio lhe fizesse pensar. Era tarde para pensar.

Após meia hora de viagem, o grupo se aproximou da montanha de Jabal. Um dos homens disse:

— Alib, podíamos aproveitar a viagem e colher um pouco de sabakh. Meus irmãos precisam de fertilizante e também podemos fazer bom uso da terra macia desse local.

— Não me oponho. Afinal, certamente havemos de colher algo do que semeamos nessa empreitada — respondeu o jovem árabe, com um tom sombrio.

Olhando-o sem entender suas palavras, o trio passou a acondicionar punhados de sabakh em alguns potes vazios que carregavam. Alib permanecia sentado em uma pedra, com gestos mecânicos. Repentinamente, uma das pás emitiu um som oco. Dois dos homens se puseram a cavar com mais cuidado. Logo, um pote de cerâmica vermelha com mais de um metro de altura se revelou, como uma estranha cria das dunas. Alib levantou-se e caminhou até o local.

— O que é isso? — perguntou.

— Me parece um pote de cerâmica — respondeu um dos homens.

— Sim, isso é óbvio. Mas nunca vi um que tivesse sido queimado dessa maneira e tampouco com esse formato. Deve ser muito antigo. Vejamos o que há dentro. Quebrem-no.

— Está louco, Alib? E se um djinn viver aí dentro?

— Então teremos direito a três pedidos — disse um dos camponeses.

— Ou a trezentas mortes — exclamou outro. — Não, devemos deixá-lo aí.

— Não sejam idiotas me falando em morte — respondeu Alib. — Quebrem-no. Talvez haja ouro aí dentro. E, Abud, não me diga que crê mesmo em djinns!

Um golpe de picareta espatifou o vaso. Em seu interior, para a surpresa de todos, havia 13 livros de papiro, encadernados em couro. Um dos homens examinou-os.

— Estranho. Estão escritos em aramaico. Devem ser mesmo muito antigos.

— Por Alá, o que deve ser isso?

— Não, não Alá — disse Alib.

Ao chegar em casa, Alib foi recebido por sua mãe.

— Filho, dois homens estiveram à sua procura.

— Quem, mãe?

— Não disseram os nomes, mas garantiram que iriam voltar. Pareciam ser da polícia. O que você fez, filho?

Sem nada dizer, Alib deixou cair os 13 livros ao lado de um monte de palha ao lado do fogão. Assustado, ele se deitou e tentou evitar a cor vermelha enquanto sonhava. Na cozinha, solitária, sua mãe rezava pelo destino do filho. Ao acender o fogo, sem perceber pegou pedaços de um dos papiros junto com a palha. Naquela noite, enquanto cozinhava para o dia seguinte, a velha senhora não conseguiu descobrir por que o nome Maria Madalena surgia em sua mente, como que trazido pela fumaça.

Alib acordou assustado e teve uma idéia. Os papiros certamente eram importantes. Se a polícia o encontrasse de posse daquela estranha biblioteca, sua situação ficaria ainda pior. Coletou os 13 livros em uma bolsa de couro e saiu de casa. Meia hora depois, entrou em uma mesquita. O sacerdote recebeu o curioso presente de bom grado e abençoou Alib quando este partia. Olhando intrigado os escritos, o velho sacerdote sentiu arrepios quando passou os dedos sobre um deles. Cânticos estranhos vieram à sua mente. Incapaz de entender uma palavra de aramaico, telefonou para um velho amigo de infância, que trabalhava como professor de História em uma universidade local.

— Quê? Treze papiros escritos em aramaico? Onde você disse que eles estavam?

O velho professor caminhou apressado até a mesquita. Lá chegando, examinou longamente os papiros. O ancião pigarreava, emitia sons de surpresa e mal conseguia esconder o excitação. O sacerdote o olhava curioso e finalmente perguntou:

— E então? O que são essas coisas?

— Essas coisas, velho amigo, podem mudar o mundo e nossas vidas para sempre. Já ouviu falar do Apocryphon?

— Não me diga que...

— Sim. Ao que tudo indica, sim.

— O... o livro que foi escrito pelo próprio Jesus Cristo.

— Sim, o diário pessoal do assim chamado Messias de Jerusalém.

— Mas... tem idéia do que pode acontecer se descobrirem esses escritos nas mãos de dois árabes?

Subitamente, um barulho chamou a atenção dos dois velhos. O sacerdote saiu da pequena ante-sala e observou a nave principal da mesquita. Uma sombra parecia sair rapidamente pela porta principal.

— Estávamos sendo vigiados. Por Maomé, você foi seguido?

— Creio que não. Bem, é tarde. Amanhã pensaremos sobre isso. Por enquanto, deixe os papiros comigo. Estarão seguros no cofre da minha sala na Universidade. Chame um táxi para mim, por favor.

O velho historiador saiu, sem deixar de sentir o peso terrível da bolsa que carregava. Do lado de fora da mesquita, porém, duas punhaladas retiraram para sempre os livros e a vida das mãos do ancião.

Nova York, Greenwich Village

São poucos os locais da Terra abençoados pelo próprio Vishanti. A curiosa mansão no número 177-A da Rua Bleecker é um deles. Em seu interior, um homem jovem demais para já ter visto o que viu e velho demais para ter ainda tanto a aprender meditava. A luz da Lua era entrecortada pela sombra dos dois pares de paralelas que guardavam as janelas circulares do santuário. Duas leves batidas na porta do cômodo retiraram Stephen Strange de seu transe.

— Entre, Wong.

— Boa noite, Mestre. Com licença. Trouxe seu chá.

— Obrigado, meu amigo.

— Se me permite perguntar, Mestre...

— Claro.

— ... por que escolheu chá preto esta noite? Normalmente, o senhor prefere jasmim ou sencha.

— Meus instintos me dizem que devo ficar acordado esta noite, Wong. Sarah já retornou?

— Sim, senhor. Creio que ela já se deitou.

— Ótimo. Vá descansar também, amigo. Vou meditar mais um pouco.

— Está bem. Boa noite, senhor.

— Boa noite, Wong. Que os vapores de Valtorr beneficiem seu sono.

Minutos após a saída do servo, Strange foi surpreendido por uma risada surda. Voltou-se e, à sua frente, um homem de capacete amarelo flutuava levemente a meio metro do chão do Sanctum Sanctorum.

— Senhor Destino. Claro, só você poderia passar pelos encantamentos de proteção que resguardam esta mansão. O que deseja, Destino? Ou devo chamá-lo de Kent Nelson? Talvez Nabu?

— Chame como quiser, Estranho. Vejo que continua conjurando estes estranhos seres e usando-os como bênções e maldições. Valtorr... humpf.

— Vejo que continua entendendo somente metade do mundo oculto. O que o traz aqui, Destino?

— O Apocryphon.

— Quê?

— Sim, o mítico diário pessoal escrito pelo próprio Messias da religião cristã.

— Então... o livro realmente existe?

— Sim. E foi encontrado recentemente por um camponês árabe. Infelizmente, os papiros passaram por várias mãos e agora seu paradeiro é desconhecido. Uma aura mística impede que os livros sejam rastreados diretamente.

— Mas por que eles devem ser rastreados?

— Vejo que continua respeitando mais o cristianismo do que eu, Estranho. Bem, vou lhe dizer porquê. O livro confirma, em primeira pessoa, vários dos milagres e acontecimentos descritos no Novo Testamento.

— Isso só tem a beneficiar aqueles que têm fé cristã.

— Sim, se fosse somente esse o conteúdo do livro. As palavras Jesus Cristo, Maria Madalena e casamento estão presentes várias vezes na mesma frase, em diversos trechos do livro, se é que me fiz entender.

— Hum...

— E, pior: o livro atesta a existência do Outro.

— O quê? — exclamou Stephen. — Mas isso... isso é...

— Sim. Isso muda tudo.

— O Outro... o mitológico irmão gêmeo de Jesus.

— E, se o que o livro afirma é verdade, o Outro possuía poderes e iluminação semelhantes ao de seu, digamos, irmão mais famoso.

— Como você sabe tanto sobre o livro, Nelson? Parece mesmo que já o leu.

— Kent Nelson nunca o leu. Mas Nabu, sim.

— Entendo. Bem, temos que procurar este livro.

— Não posso participar desta busca. Devo...

— Deixe-me adivinhar. Você ia me dizer que deve se ocupar de uma missão completamente menos importante, somente porque seus "senhores da Ordem" assim ordenaram.

— Estranho, você precisa achar o Apocryphon. Se os papiros caírem em mãos erradas, os Lordes do Caos tomarão conta desta realidade.

— Destino, você continua distorcendo o sentido das palavras "ordem" e "caos". Não percebe que caos e ordem são praticamente a mesma coisa? Existe ordem no caos. É por isso que crescem as árvores, por isso que respiramos. O caos é perfeitamente ordenado, assim como a ordem é caótica.

— Isso não faz sentido.

— Não? Quem aprisionou Kent Nelson em uma torre estóica? Quem priva Linda Nelson da felicidade amorosa? Quem obriga o próprio Nabu a caminhar ao lado de mortais? O Caos? Creio que não. É a sua autoproclamada "Ordem".

Destino nada disse. Um capacete de metal dourado não pode demonstrar emoções, mas o próprio elmo de Nabu parecia abalado.

— Você acredita nesta divisão porque lhe é mais cômodo, Destino. Caos e Ordem, masculino e feminino, luz e trevas, bem e mal — todos devem caminhar lado a lado em prol do equilíbrio que somente o yin-yang pode proporcionar. E você deveria saber que os significados do Caos já são outros há décadas.

— Poupe-me de sua ladainha, Estranho. Encontre o livro.

Em uma nuvem de fumaça, o servo da Ordem desapareceu. Estranho ficou só em seu santuário, intrigado. Parecia ter abalado as crenças de Nabu, ainda que somente por alguns segundos. Bom. Com isso, dificilmente ele voltaria a entrar desta forma em sua mansão. Mas as informações trazidas por Destino eram terríveis. O Apocryphon... Que maravilhosa oportunidade de descobrir mais sobre as fundações da maior crença da atualidade. E Estranho retirava tanto poder desta crença, ainda que poucos percebessem. Bem, era chegada a hora de invocar o Globo de Agamotto.

O globo extrai seu poder da necromancia, a arte de adivinhar e predizer através dos mortos. Nada mais adequado que a força da morte para tentar rastrear os papiros. Sentado na posição de lótus, o corpo de Strange começou a levitar, até pairar a um metro do chão do santuário. Em seguida, o globo saiu de seu invólucro dourado e estabilizou-se na direção da fronte do mago supremo. Como Estranho já previra, os livros eram protegidos por uma aura mística. Com isso, era impossível rastreá-los diretamente. Mas esta aura impregnava quem tocasse nos papiros. A última pessoa a ter contato com as polêmicas escrituras vivia em... tudo ficava mais claro agora. Sim, Los Angeles.

O manto de levitação pousou em seus ombros e Strange atravessou o telhado de sua mansão. Dois quarteirões à frente, uma figura prateada estava de pé sobre o terraço de um prédio.

— Cavaleiro da Lua.

— Hã? — disse a figura, voltando-se. — Doutor Estranho. O que faz aqui?

— Estou apenas de passagem. Parei para cumprimentá-lo.

— Humpf. Bem, obrigado.

— A lua está cheia hoje. Nossos caminhos se cruzarão em breve. Até lá, que todas as trindades o protejam.

"Trindades?", pensou o Cavaleiro. "O quanto ele sabe sobre mim?".

Graças à velocidade assustadora de seu manto de levitação, Estranho chegou à Cidade dos Anjos em 40 minutos. Carregado pelo manto, as viagens de levitação não o exauriam fisicamente e eram ideais para situações de emergência. Assim que tocou o solo em Hollywood Boulevard, Strange mascarou suas roupas de consagração mística sob a forma de um conjunto padrão de terno e sobretudo. As ruas estavam bem mais vazias naquele início de madrugada. Strange suspirou, antevendo uma longa noite.

Invisível aos olhos de quem passava, o Olho de Agamotto saiu de sua base, no medalhão usado na lapela do terno, flutuando até a fronte de Strange. Usando a clarividência de seu terceiro olho, Estranho pôde visualizar facilmente a trilha deixada pelo último dono dos papiros apócrifos. A linha esverdeada levava para longe da região central de Los Angeles. Prestes a entrar no gueto negro de Compton, o mago invocou um encanto de invisibilidade e continuou seu caminho. Subitamente, um uivo feroz se fez ouvir no alto de um prédio. Na rua, três pessoas corriam, assustadas.

Yo, brothas, aquele monstro vai detonar tudo! Vamo correr e ralar daqui!

— Cara, agora fodeu de vez. Vamo catar o Ice Jack e pegar umas Uzis lá no moquifo dele.

Levitando, ainda invisível, Strange subiu até o topo do prédio. Tecendo homenagens à lua cheia, lá estava ele. Jack Russell, o Lobisomem. Como que pressentindo a presença do mago supremo, a criatura se voltou e atacou. Strange reagiu:

— Que os Cinturões de Cyttorak envolvam a criatura, rompendo seu elo selene.

Dentro das irresistíveis faixas escarlates, os uivos cessaram. Estranho entrou na esfera protetora e encontrou um homem loiro vestindo roupas esfarrapadas.

— Quê... onde... você! Você é o Doutor Estranho. Como fez isso? Ainda é lua cheia.

— Sim, mas o elo místico entre o satélite e a fera foi temporariamente rompido. Russell, onde está o livro?

— Quê? Como você... Bom, acho que não adianta mentir. Eu o encontrei por acaso, quando estava sendo utilizado por uma seita. Esses malucos angelenos cheios da grana, que acham que qualquer coisa é motivo pra refrear seu tédio. Peguei o livro na esperança de que ele pudesse reverter minha transformação. Mas cometi um erro. Me atrasei tentando escapar dos membros da seita e a noite chegou antes que pudesse me acorrentar.

— Você estava com o livro quando se transformou no Lobisomem?

— Sim... mas não lembro o que aconteceu depois.

— Entendo. Bem, Jack, devo ir sem demora. Se preferir, posso deixá-lo dentro dos Cinturões até que a manhã chegue.

— Obrigado, Doutor. Isso me dará tempo para pensar. Amanhã, antes que a lua surja, me aprisionarei em algum local seguro e solitário.

— Ainda nos veremos, Jack. Adeus.

Enquanto tentava reencontrar a trilha do livro, o Mestre das Artes Místicas não pôde deixar de pensar na estranha maldição que se abatera sobre aquele homem. Mas a licantropia podia ser curada... a um alto preço.

A trilha mística saía da cidade de Los Angeles, em direção ao leste. Acelerando seu manto de levitação, Estranho viajou durante quase vinte minutos, até chegar ao fim da trilha: um remoto deserto no meio-oeste americano, provavelmente no Novo México.

"Tomara que o livro não esteja com o Hulk", pensou o místico. Antes que pudesse rir desse pensamento, notou uma fogueira, centenas de metros abaixo, no meio do deserto. Começou a descer, somente para ser surpreendido pelo fato de que o fogo estava em movimento.

O Motoqueiro Fantasma viajava a 180 quilômetros por hora, levantando uma nuvem de poeira atrás de sua figura infernal. Posicionando-se sobre a moto, Estranho disse mentalmente:

— Johnny Blaze. Você me conhece. Pare. Precisamos conversar.

A moto estancou numa freada fisicamente impossível. Tudo era silêncio no deserto. À frente de Estranho, somente um crânio podia ser visto, iluminado pela luz de chamas que não eram deste plano.

— Doutor Estranho — disse o esqueleto flamejante. — Posso imaginar por que está aqui. Não, o livro não está mais comigo.

— Você o pegou das mãos de Jack Russell, em Los Angeles.

— Claro, ele havia acabado de se transformar naquela coisa. Tive a mesma idéia que ele: pegar o livro das mãos daquela seita de meninos mimados. Mas Jack chegou antes de mim.

— Blaze, ao contrário do que pensa, o livro não tem o poder de anular suas transformações em Zarathos.

— Não é Zarathos, Estranho. Nunca foi. Mas tremo somente em lhe dizer o que é.

A luz do Olho de Agamotto brilhou sobre o crânio de Blaze. Ao perceber a verdade, Estranho tremeu.

— É... é inacreditável.

— Sim. Se viu o que eu acho que viu, Estranho, certamente entende melhor o Inferno agora.

— Eu... nunca teria imaginado.

— Bem, vamos ao que interessa. O livro não está mais comigo.

— Mas, Blaze, você não pode conviver com isso...

— Como eu dizia, Estranho, o livro me foi roubado. Não vi o agressor, mas uma estranha chama o retirou de minhas mãos enquanto eu viajava. O fogo e a tática eram inconfundíveis. Daimon Hellstrom.

— O chamado Filho de Satã?

— Sim. E não é apenas "chamado". Ele é o filho de Satã.

— Mefisto?

— Não, Estranho.

— Mas pensei que Hellstrom finalmente tivesse aceitado sua herança e assumido um dos círculos infernais.

— É isso que ele quer que pensem. Mas nada muda um homem de forma tão radical. Não... ele tem planos que podem abalar todos os círculos. Mas já falei demais sobre isso.

— Há quanto tempo isso aconteceu, Blaze?

— Cerca de quinze minutos. Mas ele e o livro desapareceram completamente, em uma nuvem de fumaça.

— Blaze, marquei misticamente o número de meu telefone em sua mente. Quando estiver em sua forma humana, me procure. Precisamos conversar.

— Ah... ahhahahahhhahhhahhh.

A moto acelerou e a caveira saiu gargalhando pelo deserto noturno.

Com os pêlos de sua nuca arrepiados, Strange pensava sobre a estranha revelação que havia tido.
"Blaze... é muito mais singular do que pensei. Preciso vê-lo novamente".

Com estes pensamentos, o Mago Supremo da Terra alçou vôo até o alto de uma estreita espiral de pedra. A mais de duzentos metros do chão, sob um exíguo espaço de um metro quadrado, sentou-se e meditou. Deixou-se levar pelas praias e marés do caos, tentando não pensar em seus objetivos mais imediatos. Imagens de cartas de baralho, chips de computador, arlequins, estranhas cavernas e seres reptilianos passaram em sua mente. Finalmente, quando navegava a esmo em sua meditação, ela veio. A imagem de Daimon Hellstrom, sentado em uma cadeira de ferro, a quilômetros dali. Saindo de seu transe, Estranho voou imediatamente para Midleland, Nebraska.

O meio do nada se aproximou por volta das três da manhã. Era naquela cidade de uma única rua que iria encontrar o filho do demônio.

Como que levado por uma bizarra clarividência caótica, entrou em uma pequena casa branca. Na porta, a imagem de Nossa Senhora. Hellstrom havia herdado do pai o gosto por pesadas ironias.

— Hellstrom.

— Olá, Stephen.

— Venho em paz. Vejo que voltou a exercer a profissão de exorcista.

— Sim. Mais ou menos.

— Hellstrom, o que tem em mente para o Inferno é um fardo pesado demais para um só homem. Você não conseguirá vencer esta luta sozinho.

— Você esteve com Blaze, certo? Somente ele tem estas informações. Doutor, eu mudei muito desde os tempos em que lutávamos juntos como Defensores. Percebi que minha luta deveria ser modificada. Meus ataques às hordas de meu pai serão muito mais sutis e, com isso, efetivos. Mas você veio em busca do livro, posso adivinhar.

— Sim. Não me diga que não está mais com você.

— Infelizmente, este é o caso. Eu pretendia utilizá-lo em minha luta contra os outros oito círculos infernais, mas minha própria herança maligna o afastou de mim. Minha herança e um certo encantamento cuja assinatura não tardei em reconhecer.

— Quem?

— Já lhe apresentei minha irmã, Doutor? Ao contrário de mim, ela se deleita com nossa linhagem. Se encontrá-la, encontrará os apócrifos. Ou não. Permita-me ajudá-lo.

Antes que pudesse raciocinar, Estranho se encontrava em outro local. Uma velha igreja abandonada, no interior do estado do Wyoming. A lua cheia estava cada vez mais baixa na abóbada celeste. Subitamente, gemidos de prazer chegaram aos ouvidos do mago. Em um altar repleto de poeira, Satana se masturbava.

— Hummm... chegue mais perto, Doutor... Prove da minha carne...

— O sexo tem poder, criatura, mas não este que imagina.

Horrorizado, Strange percebeu que a filha do demônio utilizava uma cruz para se masturbar.

— Por que a surpresa, Estranho? Artefatos sacros sempre dão mais prazer. Todos sabem isso. Simplesmente não admitem... Agora livre-se destas roupas...

Quando Satana levantou-se do altar para se aproximar, o mago conjurou os anéis de Raggadorr para protegê-lo. As esferas flutuavam ao seu redor. Satana parou onde estava. Estranho levou o Olho de Agamotto à sua testa, utilizando a luz do amuleto para cegar a ninfa demoníaca.

— Não precisa me dizer nada, Satana. Vejo que o livro não está mais com você. Mas não consigo identificar quem o pegou. Parece... uma criatura não-viva.

— Sim... minha aura afastou o livro de mim. Ele desapareceu das minhas mãos.

— E o que queria com os papiros?

— Ora, Doutor, eram tantas as opções... queimá-los, por exemplo. Talvez reescrevê-los para que ficassem ainda mais grotescos e fazê-los aparecer no Vaticano... derramar meu sangue mênstruo sobre eles... eh.

Incapaz de permanecer ali mais um minuto sequer, Estranho levantou vôo e, a uma velocidade assustadora, deixou-se carregar para longe pelo manto de levitação. Quinze minutos depois, reencontrou a trilha mística deixada pelo livro, no interior de uma floresta temperada. Perturbado por estar sempre um passo atrás, o mago desceu, já irritado. Assim que pousou, sentiu um forte cheiro de putrefação, como se tivesse entrado em um caixão.

— Revele-se, criatura! — gritou, deixando um largo feixe da luz do Olho de Agamotto penetrar nas trevas da densa mata. Uma esquelética criatura caminhou lentamente para fora do breu.

Simon Garth, o Zumbi, olhava para o mago com seus olhos sem íris. Quase desprovido de carne, o ser não era capaz de pensar por conta própria, apenas obedecia ordens de quem soubesse as palavras certas. Por um momento, Estranho imaginou que o Irmão Vodu tivesse utilizado aquele pobre ser para se apossar do livro. Mas Garth, o morto que há vários anos teimava em caminhar, apontou para os céus. Naquele momento, um grupo de morcegos batia em revoada. "Não... Se Drácula estiver de posse do livro, nem mesmo Vishanti sabe o que pode acontecer".

Imediatamente, o mago alçou vôo. A trilha mística continuava, indo perturbadoramente em direção a Boston, justamente a cidade onde o Príncipe das Trevas, anos atrás, havia escolhido como sua base no Novo Continente. Mas o monstro estava definitivamente destruído... ou não?

Enquanto voava, Estranho lançou sua mente à sua frente e, em Boston, um assustado Frank Drake acordou no meio da noite.

"Drake. Não tenha medo. Sou eu, Stephen Strange".

— Doutor Estranho? — disse Drake, sentado em sua cama. — O que está fazendo na minha mente a essa hora?

— Desculpe, Drake. Tenho motivos para crer que Drácula está vivo. Tem alguma informação sobre isso? Você o tem caçado durante anos.

— Tenho algumas desconfianças, Doutor. Mas nada concreto. Até onde sei, a Fórmula Montesi realmente acabou com a vida do Senhor dos Vampiros.

— Entendo... bem, adeus, Drake. E obrigado.

Assim que a imagem do mestre das artes místicas saiu de sua mente, Drake teve um sobressalto. Será que deveria ter avisado Estranho que seu amigo, o detetive particular Hannibal King, estava cada vez mais sensível à luz? Se King estivesse voltando à forma vampiresca do passado, seria isso um sinal de que a Fórmula Montesi estava perdendo o efeito?

Minutos depois, um cansado mago pousava em Boston. A trilha levava a um morcego, o que não o surpreendeu. Aproximando-se do animal, Estranho lançou sobre a criatura um feixe da luz do Olho de Agamotto.

— Pare, Drácula. Seus planos para os apócrifos não irão adiante.

O morcego pousou no topo de um edifício e, lenta e assustadoramente, voltou à forma humana.

— Ora, Doutor, Drácula? Não sei se fico lisonjeado ou ofendido.

— Morbius? Pensei que... Bem, isso não importa. Imagino que também tenha achado que os papiros poderiam reverter sua transformação.

— Confesso que sim. Induzi o pobre Simon Garth a buscá-los para mim. Mas, quando comecei a estudá-los, simplesmente desapareceram.

— Não viu nada?

— Uma espécie de vórtex surgiu em minha mesa, tragando o livro para seu interior.

— Nada dentro dele?

— Bem, vi algumas árvores. E um rio, um rio bem largo.

— Pelas Hordas de Satannis, não chegarei mais atrasado!

Estranho levantou vôo, deixando um atônito vampiro vivo para trás. Em cinco minutos, o mago descia sobre os pântanos da Flórida. "Vórtex... árvores... claro. Nestes pântanos ficam diversas passagens para outras dimensões, bem como seu guardião irracional". A trilha do livro voltou a surgir diante de seus olhos. Estranho sentia que a busca chegava ao fim. Desceu e caminhou, levitando a poucos metros sobre a água lodosa. Finalmente, ouviu vozes.

— Obrigada por ter me trazido o livro, criatura, mas não sei o que pode haver nele para me despertar tanto pavor.

— Topaz — disse Strange, revelando-se. Ao lado da feiticeira, estavam a também estudiosa do ocultismo Jennifer Kale e, sim, o guardião do Vórtex: o irracional Homem-Coisa. — Que quer dizer com pavor?

— Doutor Estranho... Se está aqui, isso é ainda mais importante do que pensávamos. Bem... tenho sonhado com este livro. Falei sobre isso para Jen e ela sugeriu que viéssemos até aqui. Com a ajuda do Homem-Coisa, conseguimos — após várias e ridículas tentativas — usar o Vórtex multidimensional para capturar o livro. Ele estava sendo examinado por um vampiro.

— O que quer dizer com "ridículas tentativas"? — disse uma voz aguda. — Só porque uma das aberturas frustradas do Vórtex me trouxe novamente a este planetinha cretino?

Estranho olhou para trás. Saindo da floresta, fumando um charuto, lá estava ele. Howard, o Pato.

— Que que foi, Doutor? Você tá lembrado de mim, né? Como é que são aquelas paradas que você fala mesmo? "Pelas Chamas de Faltine, pelos Buracos de Dragonorr".

— Howard, pare. Não temos tempo para isso. Fico... satisfeito em ver que está novamente na Terra, mas onde está o livro?

— Isso é que foi engraçado — disse Jennifer Kale.

— O livro foi teleportado das suas mãos? — disse Estranho.

— Como adivinhou?

Estranho bateu com a palma da mão direita em sua testa, visivelmente irritado. Imediatamente, o Homem-Coisa deu um passo à frente. Howard observou:

— Sem stress, Doutor. Se eu fosse você, ficava calmo. O Homem-Coisa é atraído por emoções como uma mariposa por um lampião vagabundo. E você sabe que...

— "Aquele que conhece o ódio queima em contato com o Homem-Coisa". Sim, Howard, eu sei. Kale, Topaz, me digam: quando o livro sumiu, vocês ouviram tambores?

— Estranho você dizer isso, Doutor. Como sabe?

— Um palpite. Levando em consideração meu caminho até aqui, só falta um personagem aparecer nisso tudo. E estamos perto da Louisiana. Bem, adeus.

— Ei, Doutor, espere — disse Topaz. — Em meus sonhos, o senhor aparecia. E tinha sempre a ajuda de um estranho homem loiro.

— Obrigado, Topaz, mas com a minha sorte deve ser o Tocha Humana. Adeus.

Strange levantou vôo mais uma vez, deixando o curioso quarteto para trás. Seu palpite estava certo: a trilha mística o levava diretamente para a Louisiana. Sim, o livro havia sido pego por Jericho Drumm, o autodenominado Irmão Vodu.

O halo esverdeado levava até uma mansão às margens do Mississippi. Assim que pousou em frente ao imponente edifício, símbolo de uma era de prosperidade e escravidão, tambores começaram a ser ouvidos. Gritos lancinantes e loas de prazer e invocação penetravam na mente do mago.

Papa Ghede.

A entidade estava presente, talvez guiando Estranho até a porta. Chegando na soleira, ela se abriu, revelando um homem negro e musculoso, trajando peles e portando inúmeros amuletos de madeira. Seu peito estava sujo de sangue e ele trazia nas mãos uma cabeça de galinha.

— Doutor Estranho... está atrasado. Entre.

Por algum motivo, a frase "está atrasado" irritou Stephen ainda mais. Drumm disse:

— Antes de ser cavalo de Papa Ghede, sou um psicólogo, Estranho. Você está irritado. Relaxe.

— É verdade, Drumm. Desculpe. A noite tem sido... cansativa.

— Posso imaginar. Bem, tive os livros apócrifos em minhas mãos. Tencionava entregá-los a você, para que pudesse estudá-los. Além de dever a você pela forma como me ajudou aquela vez em Nova Iorque, achei mais sábio do que deixar os papiros nas mãos de duas aprendizes de feitiçaria, um monte de lama irracional e um maldito pato falante.

— Sábias palavras, devo dizer. Agradeço a iniciativa, Drumm. Sempre admirei a forma como domina e lida com o vodu e conhecimentos arcanos similares. Na verdade, são técnicas muito parecidas com as que utilizo, ainda que isso não seja claro superficialmente.

— Eu sei. O caos e a morte são sempre parecidos. O poder da necromancia e dos mortos-vivos possui uma beleza quase fractal.

— Os livros estão com você?

— Infelizmente, não. Aconteceu algo muito estranho. Uma raiz surgiu da terra, coletou os tomos em minha mesa e rapidamente voltou aos subterrâneos, carregando-os. Foi tão rápido que não pude fazer nada. Mas sinto que ainda estão por perto.

— Os homens estão aqui, Iminência.

— Mande-os entrar.

Dois homens barbudos penetraram, desconfiados, em uma sala ricamente decorada. À sua frente, o Cardeal os esperava.

— Sentem-se.

— Ora, quer dizer que seremos financiados desta vez pelo ouro do Vaticano? Não deixa de ser irônico — disse o mercenário.

— Foi uma decisão difícil, mas tomada pelo próprio... ora, isso não importa. — falou o Cardeal. — São treze papiros. Devem chegar até aqui intactos.

— E quem estiver com eles?

— Façam... o que acharem de bom tom.

— Onde?

— Louisiana, na América.



 
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