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Adam & Steve # 02

Por Fábio Fernandes

Dois Estranhos

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Pearl Harbor — 1941

O céu do Pacífico é imenso.

Nos céus sobre o oceano, tão distante da costa leste dos Estados Unidos continentais, os vôos com que Steve sonhava ao ver o avião borrifando os milharais estão de fato acontecendo.

Vôos de guerra, onde pessoas matam umas as outras no ar. Em pleno ar. E também em terra.

Pearl Harbor é pequeno, mas o céu lá fora é muito grande. Há espaço para muita destruição.

Nebraska — 1942

A cidade não é mais a mesma. As pessoas caminham de cabeça baixa desde que os Estados Unidos entraram na Guerra. Um dia de infâmia, declarou o Presidente. É exatamente assim que todos na região se sentem. Menos os Kawakuba. Ou assim pensam todos os habitantes da cidadezinha ao ver a família de japoneses passando pela rua principal, cabeça baixa, quase pedindo perdão por estar ali. Para os americanos brancos e protestantes, os japoneses estão se regozijando pela destruição infligida por seus conterrâneos. Não demonstram, mas é óbvio que sentem. Não são amarelos, afinal?

São amarelos mas estão ali, em terras americanas. Desde o tempo do pai de Yoshibumi Kawakuba, que, ao contrário da maioria de seus compatriotas, decidiu arriscar a sorte não na pesca, como era de costume entre os imigrantes japoneses, mas no Meio-Oeste, nas plantações de milho. O patriarca da família Kawakuba, Hiroshi, achava que assim estaria mais próximo dos hábitos e costumes dos americanos. Achava que assim seria um deles. E, se não pudesse ser um deles, seu filho — ou os netos que certamente nasceriam naquela terra de oportunidades — seria.

Hiroshi morreu antes da guerra.

Não pôde ver que as mesmas lojas que antes atendiam a família Kawakuba com prazer e um sorriso nos lábios agora fecham a cara para os demônios orientais.

Pouca gente ainda fala com os japoneses. A família Strange é uma das exceções.

O céu está nublado. Não parece que vá chover, mas também não há a menor possibilidade de sol.

Sentados na entrada do celeiro, Adam e Steve debulham o milho. É possível sentir o cheiro de um bolo quentinho que sua mãe e Donna preparam na cozinha.

— O que você acha que vai acontecer com eles? — Steve pergunta para Adam. Não é preciso especificar quem são "eles".

— Não sei — responde Adam.

— Na cidade, estão falando em relocação — diz Steve. E, depois de um tempo calado: — O que é relocação?

— É quando você é retirado de um local e levado para outro — explica o mais velho. Adam sua em bicas. Não está fazendo tanto calor assim.

— Então não deve ser tão ruim assim — Steve comenta. — Eles vão voltar pro Japão, é isso?

Adam interrompe o que está fazendo e olha bem nos olhos de Steve.

— Nós estamos em guerra com o Japão — ele diz, devagar mas com muita força. Steve sente raiva nas palavras do irmão. — Ninguém vai permitir que eles voltem para lá.

Mas Steve não se dá por vencido:

— Então, para onde é que eles vão, ora?

A voz da mãe de ambos impede a resposta de Adam. O filho mais velho se levanta e vai até a porta dos fundos. Ali parada, Mary Strange entrega para o filho um embrulho feito com uma toalha quadriculada de mesa. Está fumegando.

— Leve isso para os Kawakuba — ela diz, a voz quase um sussurro.

Adam apenas assente e vai. Steve se levanta para ir junto, mas sua mãe o impede com um simples gesto. Amuado, o caçula — que já tem doze anos e se acha um homem, afinal de contas — volta a se sentar e a debulhar o milho de má vontade.

Duas horas depois, Adam volta. O embrulho ainda na mão, agora frio. O pai aparece logo em seguida e explica aquilo que seu filho mais velho não conseguiu colocar em palavras:

— Eles foram relocados. Para um campo de prisioneiros.

Nebraska — 1943

Permitiram que Adam se correspondesse com Alice Kawakuba. Isso não era bem visto pelos habitantes da cidade, mas a família Strange não se preocupava com o que pensassem. Para John e Mary, o mais importante era que todos estivessem bem. Sua família e seus amigos. E os Kawakuba eram amigos. Não importava o que o governo dos Estados Unidos dissesse. O governo não os ajudou na época da depressão. Mas Yoshibumi e John se ajudaram nos momentos difíceis. Para John, isso era o suficiente. Seus filhos e os filhos dos Kawakuba brincaram juntos a infância inteira. Steve nadava no açude com Akira, o filho do meio; Donna brincava de boneca com Judy, a mais nova.

E Adam...

Adam gostava de Alice.

Ele nunca teve coragem de dizer o que sentia. Tinha medo de que a família dela não aprovasse. No fundo, tinha mais medo ainda de que seus pais encarassem um namoro com uma oriental com desgosto. Sabia que John e Mary eram tolerantes, mas não queria forçar os limites dessa tolerância.

E agora estava profundamente arrependido.

Gostaria de ter feito o que viu nos filmes no cinema poeira da cidade. Outro dia mesmo, ao ver Casablanca, imaginou-se na pele de Rick Blaine e Alice como uma espécie de Ilsa Lund japonesa, os belos cabelos negros caindo em cascata sobre os ombros e aqueles lábios vermelhos prontos para beijá-lo.

E ele não a deixaria ir embora com Victor Laszlo.

Em menos de um ano, as cartas de Alice deixaram de chegar ao correio da cidade.

Nebraska — 1945

O tempo passa dolorosamente lento para a família Strange. Durante o dia, trabalho, muito trabalho. À noite, todos se reúnem em torno do rádio para ouvir Amos and Andy, Benny Goodman (até pouco tempo atrás era Glenn Miller, mas ele também já não existe mais) e as mensagens em ondas curtas da BBC de Londres.

A situação está difícil. Mesmo com a atuação do estranho grupo conhecido como Invasores. Mesmo com o Capitão América.

À noite, no quarto, Adam procurava ler algumas das revistas que seu tio Hugo mandava religiosamente de Gotham. Popular Science, National Geographic, Scientific American. Ocasionalmente lia algumas historinhas das revistas que o irmão recebia. Preferia a Amazing Stories e seus supercientistas com máquinas fantásticas. Com o passar do tempo, Steve passara a dar preferência a Weird Tales, com suas histórias ingênuas de bárbaros cimérios, magos, feiticeiros e toda sorte de fuga da realidade.

— Lembra das últimas notícias que a gente viu no cinema? — perguntou Steve uma noite dessas. — Do Capitão América com o Bucky? Aquele garoto deve ter a sua idade!

— Só vou fazer dezoito anos em dezembro — retrucou Adam. — E a guerra está para acabar.

— Você não queria ter tido uma chancezinha sequer de lutar na guerra?

— Não — responde Adam. — Não gosto de guerras.

— Então o que é que você vai fazer pra tirar Alice do campo?

Adam não respondeu. Não havia resposta.

Adam não consegue compreender por que as pessoas não gostam do que é diferente delas.

Passa os últimos meses de 1945 com o coração na mão, acompanhando pelo rádio todos os grandes eventos: o Dia D com seu desembarque na Normandia, a batalha de Iwo Jima, o bombardeio de Dresden.

E as explosões atômicas em Hiroshima e Nagasaki.

Pela primeira vez desde criança, Adam chora. E reza para que Alice não tenha sido mandada para o Japão.

Nebraska — 1946

Com a mesma lentidão de sempre, as coisas voltam ao normal naquela região do país. O filho do velho Ike volta da Europa sem um arranhão e com uma condecoração. Dizem que lutou na Tropa Moleza, uma das mais famosas da guerra, e que teria visto pessoalmente o Capitão América. Steve não vê a hora de falar com ele e ver a medalha.

A fazenda Kawakuba continua vazia.

Todas as tardes, Adam se senta na cerca que demarca a propriedade de sua família e fica observando a casa dos japoneses. Tentando registrar qualquer ínfimo movimento. Quando não há trabalho, Adam não sai dali nem por um decreto: mal come alguma coisa e só desce da cerca quando escurece. Deixou até mesmo de ir ao correio da cidade para apanhar as revistas do tio Hugo.

Mas isso Steve não esquece. E é num desses dias, num dia em que o sol de outono brilha com força razoável, que o irmão mais novo dos Strange desponta com um pacote debaixo do braço. Andando com calma, meio distraído, como sempre foi de seu costume. A cara meio mal-humorada. Steve não fala muito de si. Para quê, se tudo o que interessa à sua família é o primogênito, Adam? Se seu pai tivesse dinheiro, Steve teria feito como a história bíblica de Esaú e Jacó: enganaria o pai, tomaria ao irmão mais velho o direito de primogenitura e fugiria dali para qualquer outro lugar. Para Gotham. Ou para Nova York. Para onde fosse.

Mas isso não aconteceria tão cedo. Porque a notícia que ele trazia da cidade — a notícia que o velho Ike fizera questão de lhe dar, com um certo prazer na sua boca desdentada, aquele velho desgraçado — mudaria tudo. Ou, pensando melhor, não mudaria nada. Apenas apressaria as coisas.

Parou na cerca onde Adam estava. Levantou a cabeça e disse para o irmão:

— Receberam notícias de Manzanar. Os Kawakuba morreram de tuberculose.

Steve tinha razão. A morte de Alice apenas acelerou um processo que estava previsto desde 1938. Após uma breve troca de cartas, Adam Strange fez as malas (na verdade, uma mochila de lona surrada com algumas mudas de roupa e algumas revistas) e partiu para encontrar o tio Hugo em Gotham City.

E Stephen Strange ficou sozinho com seus pensamentos. Esperando a sua vez de ir embora.




 
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