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Adam & Steve # 01

Por Fábio Fernandes

Dois Soldados

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Nebraska, EUA. 1938.

O céu do meio-oeste americano é imenso. O horizonte se perde de vista para qualquer lado que se olhe. Existem muitas plantações naquela região, na maior parte milharais. É preciso forçar os olhos para conseguir enxergar uma ou outra casa de fazenda. A norte, a do velho Robson. A leste, a da família japonesa Kawakuba. E mais nada.

É um mundo grande, aquele.

Nuvens começam a se formar ao longe. Vai chover mais tarde.

Sentados numa cerca, dois irmãos mascam talos de grama e olham para os cúmulos escuros que se aproximam pouco a pouco.

— Você acha que vai haver guerra? — o caçula pergunta de repente para o mais velho.

— Não sei. — responde o outro.

— Tomara que sim. — diz o caçula.

O mais velho olha para ele, franzindo a testa.

— Por quê, Steve?

O caçula dá de ombros.

— É bonito. — ele diz — Lembra daquele filme que a gente viu na cidade no ano passado? "Anjos do Inferno"? Todos aqueles aviões combatendo em pleno vôo. Em pleno vôo, Adam!

— É. — o outro concorda — Voar é bonito mesmo.

— Bem que eu gostaria de voar num daqueles aviões que pulverizam as plantações. Do tipo daqueles que o sr. Kawakuba contrata de vez em quando. Você já viu esse avião de perto, não viu?

— Já. — responde Adam, com um suspiro. Seu irmão caçula não repara.

— Vamos à cidade amanhã? — pergunta o mais novo.

O mais velho não responde. Fica apenas olhando para longe. Para o nada.

Na tarde seguinte, estão todos na cidade: o pai, a mãe, os dois rapazes e Donna, a irmã mais nova. A mãe e Donna foram comprar mantimentos na loja do velho Ike; o pai e os garotos foram para a oficina do sr. Podolski à procura de peças para a colheitadeira.

Adam acompanha com interesse a explicação do sr. Podolski sobre o encaixe correto das peças e o cuidado na hora de limpar as lâminas. Steve não disfarça o tédio. Olha de um lado para o outro, procurando alguma coisa para se distrair. Mas não há nada ali.

Aproveita a distração do pai e do irmão mais velho e vai saindo de fininho até a calçada. Do outro lado, na drogaria do velho Ike, sua irmã brinca com Judy, a mais nova dos Kawakuba. A irmã mais velha, Alice, cuida para que as duas pirralhas (afinal, as meninas têm apenas cinco anos) não se machuquem nem ponham nada na boca.

Mas Steve não está preocupado nem com sua irmã nem com a japonesa. O que ele realmente quer está na vitrine.

Um exemplar de "Amazing Stories".

Há um bom tempo que ele vem desejando comprar essa revista. Sempre que vão à cidade, ele fica na vitrine, namorando as capas de um colorido extravagante, cheias de mocinhas em trajes sumários sendo atacadas por monstros gigantescos e gosmentos de olhos esbugalhados e defendidas por jovens louros e musculosos usando roupas colantes e armas de raios criadas com a ajuda da superciência. A revista não é barata, mas tem tantas páginas que se ele fizer um esforço, aposta que é capaz de levar uns dois ou três meses para terminá-la. Só falta ele convencer o pai a...

— O que é que você está fazendo aqui? — uma voz às suas costas.

— Droga, Adam, que susto!

— Não diga profanidades. — censura o mais velho — Você devia estar lá dentro com a gente.

— Eu já vou. — diz Steve — Só queria dar uma olhada na revista.

Adam balança a cabeça. Seus cabelos louros brilhavam como ouro na luz da manhã.

— Isso não é revista para você. — ele diz.

— Eu já fiz oito anos. — retruca Steve — E você também não é nenhum adulto. Você só tem dez anos.

— Vou fazer onze em dezembro.

— E daí? Não vai dar tempo pra você lutar na guerra.

Adam respira fundo, coloca a mão no ombro de Steve, e diz, como quem explica uma coisa óbvia:

— A guerra não é o mais importante, Steve.

— Tem razão, rapazinho. — diz uma voz atrás deles.

Ambos dão um pulo com o susto.

O homem que vêm agora é alto e magro. Parece-se um pouco com o pai, mas é careca e usa óculos redondos de aro metálico. Não conseguem ver os olhos dele.

— A ciência é o mais importante. — diz a figura.

— Q...quem é o senhor?

Neste instante, o pai dos dois aparece e coloca amigavelmente a mão no ombro do careca.

— Eles não lembram de você. — diz ele, sorrindo — Eram muito pequenos quando você partiu. — Adam, Steve, este aqui é meu irmão. Cumprimentem o tio Hugo.

— Se vai haver guerra? — Hugo diz à mesa do jantar naquela noite — É claro que sim! É a guerra que move o mundo.

— Hugo, nesta mesa não falamos de guerra. — a mãe dos rapazes diz, séria.

— Claro, Mary, claro. — diz Hugo, servindo-se de purê de batata — De qualquer maneira, não era disso que eu queria falar. O que eu falava aos jovens aqui — e faz um aceno de cabeça para Adam e Steve, que absorvem atentos cada uma de suas palavras — é que a ciência é mais importante. Infelizmente ela também é usada para a guerra, e isso não pode ser impedido. Mas é um mal menor. O importante é que isso nos traz novas invenções, desenvolvimentos e caminhos diferentes, fora do convencional. Em breve teremos implementos agrícolas mais sofisticados, John, sabia disso? Em mais algum tempo você nem sequer precisará usar essa sua colheitadeira ou o arado. O trabalho todo será feito por máquinas automáticas, conduzidas por autômatos que farão tudo o que mandarmos. Está tudo aí, rapazes, nessas revistas que comprei para vocês.

Embaixo da mesa, cada um agarra com paixão um exemplar de sua revista. Steve segura o último número de "Amazing Stories"; Adam tem no colo uma edição de "Popular Mechanics".

— Não precisava, Hugo. — diz John.

— Imagine! — responde Hugo, limpando o canto da boca com o guardanapo — Eles já são homens. Está na hora de conhecerem o que existe no mundo ao redor deles. — e, abaixando um pouco a voz: — Havendo guerra ou não, John, o mundo vai mudar muito nos próximos tempos. E vai precisar de rapazes inteligentes. A ciência precisa de todas as cabeças pensantes que puder reunir.

— Eles ainda são muito novos, Hugo. Preciso deles na fazenda.

— Eles precisam é de estudo, John. A guerra vai começar em breve. Não vai ser agradável. E cada um precisa lutar com as armas que tiver.

— Quem quer mais milho? — Mary interrompe ostensivamente.

Nesse momento, as nuvens fora da casa se transformam em chuva. As de dentro de casa, não.

Quando Steve acorda, no dia seguinte, o tio Hugo não está mais lá. Sua mãe não está com cara boa, e seu pai já está na plantação com Adam. Brinca um pouco com Donna e vai para os fundos da casa.

O açude fica a dez minutos de caminhada. Steve anda o tempo todo olhando para trás, para ver se não está sendo seguido, e aperta o passo nos últimos metros. Só se sente em segurança quando senta-se ao pé da árvore cujos galhos resvalam no espelho d'água. Tira de dentro da camisa o exemplar da revista.

Molhando os pés na água do açude que ajuda a irrigar a região, Steve começa a folhear a revista. Uma história inédita de Buck Rogers! Ele adora aquele aventureiro de nossa época perdido num futuro distante e sombrio, ocupado em grande parte por orientais sinistros que haviam transformado New York em "Nu-Yok" com sua péssima pronúncia do inglês.

"Como é que eles não sabem falar inglês? Todo mundo sabe, ora!" — pensa ele, enquanto folheia as páginas.

Outras histórias interessantes chamam sua atenção. "Tumithak dos Corredores", "A Cotovia do Espaço", um capítulo inédito de "Last and First Men", de Olaf Stapledon. Todas histórias de exploradores do espaço, de homens (só de homens, claro; as mulheres são as vítimas a serem resgatadas) que superam todos os obstáculos e atingem seus objetivos a ferro e a fogo... ou a armas de raios, claro.

Steve está tão entretido que nem repara que vai se curvando, curvando e se chegando mais perto do açude, até estar praticamente sentado na água. Adormece tão suavemente que não percebe que está se afogando até ser tarde demais.

Ou quase.

Só se dá conta do que está acontecendo quando ouve o grito e sente uma mão puxá-lo com força. Então vê, com os olhos molhados, seu irmão Adam curvado sobre ele. Ainda grogue, sente (de longe, como se fosse com outra pessoa) as mãos de Steve apertarem sua barriga com força. Sente alguma coisa subindo pela garganta. Vira a cabeça para o lado: é o tempo de vomitar jatos d'água e pedacinhos do café da manhã. Ainda esgotado, procura pela revista. Pelo canto dos olhos, nota a forma quadrada e molhada flutuando na água. Tem raiva.

Vira a cabeça devagar (dói) e torna a encarar o irmão.

— Como...? — é o que consegue perguntar por entre as golfadas de água.

— Fácil, seu bobo. — responde o irmão — É pra cá que eu venho quando quero ficar sozinho também, você nunca percebeu? Imaginei que você iria querer matar o trabalho para ficar aí lendo sua revistinha.

E, antes mesmo que Steve consiga falar alguma coisa, ele continua, desta vez com um sorriso:

— Papai me disse que, quando eu for mais velho, me deixa ir para Gotham City para ficar com o tio Hugo. E eu vou poder trabalhar em mecânica de aviões!

Ali, naquele instante, cansado, sentindo toda a humilhação de ter sido salvo pelo irmão e de saber que ele, o louro, o americano típico (ao contrário dele, o magro, franzino, de cabelos pretos), é o preferido não só dos pais como também daquele tio tão diferente e interessante, o jovem Stephen Vincent só consegue pensar numa coisa:

"Eu odeio você, Adam Strange."




 
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