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UCE Especial

Por Marcelo Augusto Galvão

O Ar da Cidade

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A cena do crime era um beco sujo, uma pequena mancha escura no mapa de Nova York, parecendo o buraco feito por um verme numa maçã podre.

— Diga aí, Clare, por que alguém sai pelo Bronx fantasiado num uniforme berrante e chamando a si mesmo de Fogo Selvagem? — o detetive John Madoz disse, guardando os óculos escuros no blazer. Mesmo às oito horas da manhã, o beco era mal-iluminado, como se os raios do sol se recusassem a tocar o local.

A detetive Clare Santini afastou uma mecha de cabelos negros do rosto, enquanto curvava-se para observar a vítima. O cadáver era de um homem caucasiano recém-saído da puberdade, de porte físico mediano; sob o que restara de uma camiseta e jeans chamuscados, vestia um spandex de cor negra com detalhes em vermelho, lembrando um rastro de fogo.

— Acho que ele não tinha muitas opções quanto ao nome. — Santini respondeu; seu tailleur bege destacava-se no meio do azul-marinho dos uniformes dos policiais que garantiam o perímetro da cena e dos peritos forenses que vasculhavam o beco imundo — Era um pirocinético, manipulava calor e chamas. Agia nessa área há três semanas, pelo que li nos relatórios desse distrito.

Todos os distritos policiais da cidade tinham a obrigação de relatar qualquer ocorrência envolvendo meta-humanos à Unidade de Crime Especiais. Vinte minutos atrás, um policial respondera a chamada do dono do restaurante que fazia fundos com o beco e que, ao varrer o lixo para fora, descobrira o cadáver encostado na lixeira verde.

— Anteontem ocorreu uma tentativa de assalto numa loja de conveniências a um quarteirão daqui. — a detetive continuou — Um homem vestindo uma máscara e um uniforme com essas características impediu o crime. A proprietária informou que ele identificou-se como Fogo Selvagem. Tudo leva a crer que a vítima é o mesmo meta-humano.

— Só você pra ler todos os relatórios que aparecem lá no esquadrão. Bom, de qualquer maneira isso explica porque o beco tá meio tostado. — Madoz, coçando o cavanhaque castanho que lhe cobria o queixo, observou as manchas enegrecidas nas paredes — Pelo visto, ele lutou com o assassino. Já dá pra saber a hora da morte, doutora Ling?

Agachada ao lado do cadáver, a legista de traços orientais voltou-se para o detetive.

— Com base na temperatura do fígado — e ela mostrou a incisão que fizera no tórax da vítima para introduzir o termômetro digital — e na lividez cadavérica, eu diria que a morte ocorreu umas oito horas atrás.

— Isso é por volta da meia-noite. Causa provável da morte?

Ling virou a cabeça de Fogo Selvagem, ainda não congelada pelo rigor mortis. Enquanto sua face direita mostrava um rosto juvenil, com direito a um par de acnes, a esquerda era uma polpa vermelha e branca de sangue e ossos quebrados.

— Múltiplos golpes no crânio. À primeira vista, mais de uma dúzia. Morte foi praticamente instantânea, mas somente posso confirmar após a autópsia.

Um dos peritos aproximou-se dos detetives:

— O fogo destruiu a maior parte das evidências e a chuva forte que caiu durante a madrugada estragou o resto. Mesmo assim, conseguimos algumas digitais parciais na lixeira. Além disso, creio que achamos a arma do crime no meio daquele lixo. — e mostrou um cano de metal enferrujado e com uma das extremidades manchada de sangue — Somente falta comparar com o tipo sanguíneo da vítima. Também encontramos isto, jogada ali no canto.

E ele estendeu a mão, segurando uma mochila azul, levemente chamuscada. Os detetives, usando luvas de látex, verificaram seu conteúdo, parcialmente poupado do fogo pela chuva da madrugada: um agasalho de moletom, um livro com aparência de usado intitulado "Aqui é Nova York", de E. B. White, uma carteira de couro barato contendo alguns dólares e, escondida no fundo da mochila, uma máscara com a mesma cor e design do spandex que a vítima usava.

— Já que ela não levava qualquer tipo de identificação nos bolsos ou na mochila, — Santini observava o perito guardar e catalogar os objetos em sacos de papel marrom — nosso primeiro passo é descobrir quem era o homem por trás da máscara de Fogo Selvagem.

— As impressões digitais da vítima não se encontram nos bancos de dados da polícia ou do departamento de trânsito. — Santini disse. A detetive e seu parceiro estavam na sala de Harry Stein, o capitão da Unidade de Crimes Especiais de Nova York — O que sabemos até agora é que ele nunca teve antecedentes criminais e que não tinha licença para dirigir nesse estado.

Stein soltou um suspiro. Desde que a Unidade assumira o caso há uma hora e meia atrás, recebera quatro chamadas telefônicas do comissário de polícia, pedindo maiores informações sobre o crime. Stein era um policial veterano o suficiente para saber que "pedir informações" era um eufemismo usado pelo alto escalão do departamento para "solucione esse caso o mais rápido possível, pois o prefeito está bufando no meu pescoço".

E não era sem motivo. Uma das fontes de renda da cidade era o turismo, inclusive o chamado turismo meta-humano, que atraía levas de estrangeiros para visitar — ainda que à distância — pontos como a mansão dos Vingadores e a Ilha Titã, ou locais de batalhas memoráveis — pelo menos na opinião das agências de turismo — entre super-heróis e vilões. A morte de um meta-humano, por mais que não fosse uma celebridade, poderia trazer uma sensação perigosa de insegurança para os turistas e uma conseqüente diminuição na renda.

— Algum resultado da perícia ou da autópsia?

— Ainda não temos nada do laboratório criminal, apesar da prioridade dada ao caso. A doutora Ling achou alguns fios de cabelo, longos e de cor castanha, na roupa da vítima. Ela acredita que tenham sido arrancados do assassino durante a luta dele com Fogo Selvagem. O problema é que os folículos foram danificados pelo fogo. A perícia está tentando achar um modo de extrair o DNA deles para compararmos com os bancos de dados. Mas eles não têm muita esperança.

Stein tamborilou os dedos sobre um peso de papel, uma réplica do rei no jogo de xadrez. Santini continuou:

— A barra de ferro encontrada no local combina com os vinte e três golpes desferidos no crânio. Pela violência empregada, acredito que temos um possível crime passional.

— A vítima tinha algum inimigo conhecido?

Madoz balançou a cabeça:

— A primeira aparição pública dele não faz nem um mês. Só enfrentou bandidos pés-de-chinelo, esse tipo de gente.

— Então também não podemos descartar a hipótese de que tenha sido alguém próximo dele. Uma namorada, talvez.

— Ou namorado. Esses meta-humanos são todos esquisitos, sempre tem alguma coisa escondida no armário. E não falo só do spandex.

— O resultado da perícia chegou. — a detetive Charlotte Jones disse, entrando na sala e segurando uma pasta bege — A má notícia é que ainda não conseguiram informação alguma com os folículos. A boa é que uma das digitais na lixeira — e ela entregou a pasta para o capitão — é de alguém já fichado pelo DOE.

"E se está nos arquivos do Departamento de Operações Extranormais," — pensou Stein — "significa que estamos falando de um meta-humano ou de alguém relacionado com eles."

O capitão fitou a fotografia de um caucasiano na casa dos trinta anos, cuja cabeleira castanha emoldurava um rosto de feições eslavas. Olhos azuis e cruéis encaravam a câmera.

— O nome dele é Daniel Wojna, freqüentador assíduo da prisão da ilha Ryker. — Jones continuou — Preso por roubo, agressão e vandalismo quando usava o apelido de Labareda Fatal.

— Labareda Fatal? — Madoz disse — Só falta me dizer que esse cara também era pirocinético.

— Ele nunca foi um meta-humano. — Stein mostrou a foto de um homem alto e musculoso, vestido em um spandex vermelho — Sempre usou um lança-chamas high-tech em seus crimes. Seu nome consta no DOE por ser cúmplice de criminosos meta-humanos, todos de terceira categoria como ele. Solto há quatro anos por bom comportamento, cumpriu a condicional e desde então nunca mais foi fichado.

Jones aproximou-se dos colegas.

— Os peritos também encontraram esse recibo de compra entre as páginas do livro. Ele foi adquirido em uma loja a cinco quadras da cena do crime. Talvez o vendedor saiba algo sobre a vítima.

O telefone na mesa do capitão tocou. Ele olhou para o aparelho e depois para os três policiais:

— Não preciso ser um meta-humano telepata para saber que é o comissário no outro lado da linha. John e Clare, visitem essa livraria e vejam se conseguem alguma pista. Charlotte, quero que você e Clay localizem Daniel Wojna, vulgo Labareda Fatal, e o tragam para uma entrevista. Precisamos descobrir o que ele fazia naquele beco com Fogo Selvagem.

— Na certa competiam pra ver quem fazia a maior bola de fogo. — Madoz disse — Esses meta-humanos são todos esquisitos.

A visita à livraria revelou aos detetives que Fogo Selvagem chamava-se Stephen Koch, 20 anos recém-completados, natural do estado de Ohio e morando em Nova York havia seis semanas.

— Stevie sempre estava disposto a ajudar as pessoas. — disse Helena Papayannis, uma mulher de meia-idade e meia dúzia de quilos acima do peso. Era diretora da Nova Chance, uma organização não-governamental dedicada a combater a pobreza e ajudar os necessitados. A ONG tinha sede em um antigo prédio que passava no momento por reformas; no andar térreo, funcionava uma loja que vendia produtos de segunda mão — roupas, livros, móveis — e cuja renda era revertida para trabalhos assistenciais. Stephen Koch era um dos funcionários da ONG.

— Com toda bondade que ele tinha, não me surpreendo que fosse um super-herói. — Papayannis, olhos cheios de lágrimas, prosseguiu e mostrou a cópia do recibo do livro — Não foi à toa que comprou "Aqui é Nova York", um livro que é uma declaração de amor pela cidade. Stephen uma vez me contou que seu sonho era morar aqui. Tão logo soube que o livro estava à venda na nossa loja, correu para comprá-lo. Nunca vou esquecer da felicidade dele naquele dia.

— A senhora teria alguma foto dele? — Santini escrevia no pequeno bloco de anotações as informações que a mulher lhes revelava.

A diretora apontou para várias caixas de papelão empilhadas na sala.

— Tenho uma em algum lugar dentro das caixas. Desde que iniciamos a reforma do prédio, minhas coisas foram empacotadas e me mudaram provisoriamente para essa salinha. — ela revirou a papelada por alguns segundos, até os dedos rechonchudos fisgarem algo — Aqui está ela.

Era uma foto pequena, acompanhando o currículo de Koch, mas mesmo assim era possível notar as semelhanças entre o rapaz da foto e o cadáver no beco.

— Esse cara devia ser santificado. — Madoz disse, após passar a última meia hora entrevistando, junto com Santini, os funcionários e colegas de trabalho de Stephen Koch — Todo mundo disse que ele era um "amor de pessoa", "bonzinho", "gentil", "doce", e que ele fazia hora extra de graça.

— Pelo menos podemos refazer os últimos passos dele. Sabemos que ele saiu daqui acompanhado. — a diretora informou que haviam trabalhado até tarde na noite anterior, e que Koch e uma colega chamada Brenda Sanders deixaram juntos o local. Talvez ela soubesse de algo que pudesse auxiliar a investigação. O problema era que faltara no trabalho; telefonara pela manhã avisando que estava com um forte resfriado e que iria no médico.

— Ninguém atende na casa dela. — Santini fechou o celular — Vamos tentar mais tarde. Ela mora no outro lado da cidade, já o apartamento que Koch alugava junto com um amigo fica perto daqui.

— Vocês tão dizendo que Stevie morreu e que ele era um super-herói?! — Eric Baldwin disse, arregalando os olhos. Habitava um apartamento decadente em um prédio que resistia a urbanização no bairro. Assim como Koch, era natural de uma cidade pequena em Ohio e se mudara para Nova York dois anos antes, em busca de melhores condições de vida. Observando as paredes manchadas de bolor e a mobília vagabunda que decorava o local, Santini concluiu que Baldwin ainda tinha muito que progredir — Como vou explicar isso pros pais dele?

— Vocês se conheciam há muito tempo? — a detetive perguntou.

— Desde o colégio, quando fomos escoteiros. — Baldwin andava de um lado para o outro, passando as mãos pelos cabelos loiros — Eu tenho que telefonar pra avisar a mãe dele.

— Isto foi providenciado pelo nosso capitão. Não sentiu falta de Koch hoje pela manhã?

— Ele às vezes varava a noite lá na ONG, por isso nem esquentei.

— Pelo visto, você era o amigo mais próximo dele aqui. Sabia do segredo dele, senhor Baldwin?

Ele balançou a cabeça de um lado para o outro.

— Não. A gente quase não tava se vendo muito nessas semanas, ele trabalhando e eu fazendo uns bicos de entregador de pizzas. Mas notei que ele estava mais feliz. Stevie sempre foi um cara bom, altruísta. Acho que não é à toa que se tornou super-herói.

Madoz fez um muxoxo:

— Ele tinha algum inimigo conhecido? Vizinho, uma ex-namorada, algo assim? Tanto aqui como lá na cidadezinha de vocês?

— Também não. Ele era amado por todos e...

— Já sei disso.

— Podemos ver o quarto dele? — Santini perguntou.

O cômodo só conseguia abrigar uma cama velha e um armário. A parede era decorada espartanamente com uma quadro de uma paisagem urbana, fotos da vítima em pontos turísticos de Nova York e uma pequena placa de madeira, na qual estava gravada as palavras "Stadtluft macht frei".

— Sabe o significado dessa frase?

— "O ar da cidade concede liberdade". Foi o bisavô do Stevie que fez essa placa. Antes de imigrar, ele morava em um vilarejo na Alemanha e sempre dizia que não queria passar o resto da vida num lugar como aquele. Pegou todas as economias que tinha, foi para o meio-oeste e fez a vida por lá. Quando morreu, era dono da metade da cidade. Stevie pensava como ele, por isso veio para Nova York.

— Ainda estamos na estaca zero. — Madoz disse para a parceira, que conduzia o sedã através da baixa Manhattan, lar da bolsa de valores e da prefeitura; os detetives dirigiam-se à casa de Brenda Sanders, colega de trabalho da vítima — Só sabemos que Fogo Selvagem era um caipira ambicioso que tentava a sorte na cidade grande. Com tanto super-herói por aqui, ele deveria ter procurado outro lugar pra iniciar a carreira.

— Nova York é considerada por muitos uma espécie de capital do mundo. A sede da ONU é aqui, por exemplo. Ele não poderia mudar-se para uma cidade qualquer.

— Ah, é claro. — Madoz sorriu — Ele tinha que vir pra cá pra se inspirar em heróis de verdade como Homem-Aranha. Afinal de contas, os únicos supers que ele poderia adotar como modelo lá no meio-oeste eram os Vingadores Centrais, né? — o semblante do policial fechou-se — Um cara com esses poderes poderia fazer uma boa grana, mas prefere dar uma de bom moço por aí. Basta eles terem uns poderes bestas pra querer humilhar a gente.

— A gente? — à frente deles, o semáforo ficou vermelho.

— Sim, nós, os humanos, os normais, eu, você. Não os meta-humanos, os mutantes, as aberrações que acham que são deuses, que estão acima da lei. Quando patrulhava as ruas, cansei de ver esses meta-babacas atrapalhando meu trabalho. Eles têm que aprender a respeitar a lei como todo mundo. Por bem ou por mal.

— Por isso você entrou na Crimes Especiais? Para impor respeito aos meta-humanos?

— Em parte, sim. Mas o adicional de periculosidade que recebemos por lidar com eles também me incentivou.

Santini suspirou e balançou a cabeça de uma lado para o outro.

— E você, Clare, por que escolheu o esquadrão? Sei que formou-se com louvor em criminologia, que tua monografia de conclusão foi sobre meta-humanos e que coleciona elogios dos comandantes dos distritos em que passou.

— Assim como Koch, também sou ambiciosa. Quero ajudar os outros, mas de outra forma. Eu quero fazer a diferença.

— Sei. E como você vai fazer isso?

O semáforo mudou para verde.

— Eu tenho meus planos, John. — Santini disse. À esquerda dela, a fachada de mármore e granito da prefeitura de Nova York erguia-se, dominando a paisagem — Eu tenho meus planos.

Quando Madoz ia perguntar mais uma vez, seu celular vibrou.

— É do esquadrão. — ele disse, vendo o número do telefone no visor do aparelho — Madoz falando.

Alguns segundos se passaram, com o detetive ouvindo atentamente seu interlocutor. Seu tom de voz era diferente quando voltou a falar:

— Ótimo! Daqui a pouco estamos aí — desligou e virou-se para a parceira — Vamos visitar a colega de Koch noutra hora. Labareda Fatal foi encontrado.

A sala de interrogatório ficava no subsolo do edifício Wambaugh, lar da Unidade de Crimes Especiais. O "bunker" — o apelido dado pelos policiais ao cômodo — fora projetado especialmente para acomodar suspeitos meta-humanos; as paredes eram reforçadas de concreto e titânio, numa tentativa de evitar a fuga de um interrogado, enquanto câmeras instaladas em cantos opostos transmitiam as imagens para monitores de cristal líquido em uma sala adjacente.

— Usei todos os informantes que eu tinha para descobrir o paradeiro atual de Wojna. — Clay caminhava junto com Santini e Madoz pelo corredor de acesso ao bunker. Com quase quarenta anos de serviço, era um dos mais antigos detetives no departamento — Agora é com vocês.

— Obrigado, Clay. — Santini disse; com um metro e setenta e cinco centímetros de altura, a detetive sumia perto do corpulento colega sênior — Vamos primeiro dar uma espiada nele pelos monitores.

— Mas quem é esse cara?! — Madoz exclamou, ao ver a imagem de um homem descarnado, o rosto sulcado por uma teia de rugas; roupas surradas cobriam-lhe a magreza e um boné tentava, sem sucesso, esconder uma cabeleira que descia pelos ombros.

— Não o reconhece? — Clay apontou com o queixo duplo a foto do indivíduo musculoso e de spandex vermelho, rotulada "Wojna, Daniel", que Santini levava.

— Era só o que faltava. — Madoz virou-se para a parceira, ao ver os olhos azuis desbotados do suspeito moverem-se freneticamente e seus dedos ossudos tamborilarem sobre a mesa — Vi muito disso quando tava na Entorpecentes. Esse olhar, a magreza, a inquietação. Nosso suspeito é viciado em crack.

— Foi exatamente o que apurei ao achá-lo. Ele mora há mais de dois anos nas ruas. Vive de catar lixo nas ruas e gastar o dinheiro em drogas.

— Senhor Wojna, o que sabe sobre esse crime? — Santini perguntou ao entrar no bunker e jogar sobre a mesa as fotos da cena do crime de Koch.

Os olhos do outrora Labareda Fatal fixaram-se por um segundo nas fotos. Seu corpo estremeceu, afastando-se alguns centímetros da mesa.

— Eu num sei do que tão falando, dona.

— Tuas impressões digitais estão em todo lugar, principalmente na lixeira do beco. — Madoz disse.

— Já disse que num sei de nada. — Wojna disse, a voz titubeante — Eu às vezes moro naquele beco, cato lixo e vendo.

— Onde estava ontem à noite, senhor Wojna?

— Dormindo num albergue.

— O mesmo local onde o detetive Claymore o encontrou?

O sem-teto confirmou com a cabeça. Seus olhos não paravam de se mexer dentro das órbitas.

— Mas o único registro que consta aqui da administração do albergue é que o senhor estava lá para a sopa do almoço de hoje.

— Não, eu dormi lá.

— Onde estão seus pertences? — Santini perguntou e, vendo a confusão no rosto do suspeito, explicou — As coisas que o senhor guarda para vender, onde elas estão?

— Eu, eu perdi meus, hã, pertences.

— Quando?

— Eu num sei. — os cabelos que não viam xampu há semanas balançaram de um lado para o outro — Só sei que quero ir embora daqui.

— E voltar para as pedrinhas de crack, né? — Madoz sorriu.

— Eu tô limpo.

— Sei. Já vi um monte de fracassados como você falarem a mesma coisa antes.

Wojna esfregou o rosto macilento.

— Eu quero voltar pras ruas. Pode ser mais perigoso, pode ter mais confusão, mas é melhor do que tá aqui dentro.

— De que confusão o senhor está falando?

— Eu num fiz nada de mal pra ninguém, tá bom? Só quero que me deixem em paz.

— O senhor quer ir embora e nós queremos algumas respostas. O que sabe sobre os acontecimentos de ontem à noite?

Wojna passou a língua pelos lábios. Respirou fundo e, agarrando a borda da mesa com força, contou que naquela madrugada fora acordado por uma discussão enquanto dormia no beco.

— Eram dois sujeitos. Num consegui ver a cara deles, mas sei que o que tava de costas pra mim tinha cabelo comprido, da cor do meu. Fiquei quietinho no meu canto, não querendo saber de barulho.

Foi quando a discussão esquentou. Literalmente.

— Uma bola de fogo apareceu do meio deles. Eles ficaram se socando, soltando fogo pelas mãos. Tive tempo somente de me levantar e sair correndo antes que o beco queimasse.

— Viu mais alguma coisa?

— Escutei os dois brigando quando corria. Aí começou a cair um toró. Pensei em voltar pra pegar minhas coisas, mas eu fiquei com medo. Passei o resto da madrugada andando por aí.

— Tem algo que me intriga nesse depoimento. — Santini disse, ao sair do bunker — Ele disse que o assassino de Fogo Selvagem tinha poderes pirocinéticos também.

— É, mas será se podemos confiar no testemunho de um viciado? Continuamos no zero, até que o DNA desse fracassado seja comparado com o cabelo encontrado na cena do crime. Se é que a perícia vai conseguir alguma coisa.

Santini suspirou.

— Ainda nos resta a colega de trabalho de Koch. — ela disse, sentindo-se como um náufrago ao tentar agarrar a última bóia disponível.

Sentada à frente de Brenda Sanders, a detetive Santini reparava nos longos cabelos castanhos que a testemunha exibia até os ombros.

— Saímos juntos e nos separamos uma quadra antes da estação do metrô. Stevie disse que ia a pé para casa. — Brenda puxou um lenço de papel de uma caixa grande ao lado do sofá — E pensar que se eu o tivesse acompanhado, poderia estar morta nesse momento... — e dizendo isto, assoou o nariz.

— Vocês ficaram até tarde na sede da ONG? Algum motivo especial, senhorita Sanders?

— Arrumávamos a loja, que está uma bagunça por causa da reforma. É tanto pó que meu resfriado piorou.

— E depois que pegou o metrô, voltou pra cá sozinha? — Madoz perguntou.

— Sim. Ele bem que queria me acompanhar, mas eu disse que não precisava. Talvez estivesse vivo agora. — assoou o nariz mais uma vez — Pobre Stevie, era um rapaz tão bom, gentil...

— Já sei disso.

— ... sempre entusiasmado, querendo consertar o que estava errado. Estava ajudando na reforma, e nem tinha a obrigação de fazer isto, ainda mais depois do que aconteceu.

— Não tinha obrigação? O que aconteceu exatamente? — Santini franziu o cenho.

— Estou falando da reforma no prédio. Não sei se vocês sabem mas faz, deixa ver, um mês mais ou menos que o prédio quase foi destruído numa briga entre os Vingadores e uns bandidos. Stevie por pouco não morreu.

— Ele se envolveu na briga? Quero dizer, Fogo Selvagem estava envolvido?

— Oh, não. Chegávamos do almoço quando ouvimos uma confusão na rua. Os Vingadores enfrentavam uns bandidos com uma espécie de balde na cabeça. Eles tinham roubado alguma coisa, uma caixa, não sei bem. — ela encolheu os ombros — Sei que de repente a tal caixa explodiu. Foi tudo muito rápido. A explosão foi muito forte, danificou o prédio e acabou machucando Stevie e um outro rapaz que passava por ali.

— E o que aconteceu com Koch?

— Os paramédicos levaram ele para o hospital. Ele ficou internado em um hospital e mesmo quando a senhora Papayannis deu um dia de folga, ele retornou antes. Acho que estava se sentindo culpado por não ter usado seus poderes sem revelar sua identidade, ali no meio de todo mundo.

— Fogo Selvagem fez sua aparição pública uma semana depois do acidente com Koch. — Santini disse, de volta ao esquadrão. Haviam feito outras algumas perguntas, mas Sanders não informara nada de novo.

— E daí, acha que isso tem alguma coisa a ver com o crime?

— Até agora, tudo o que investigamos nos levou a concluir que Stephen Koch, vulgo Fogo Selvagem, não tinha inimigos no seu passado. Não temos o motivo para o crime.

— Bom, o cara era tão bonzinho que chegava a ser chato, convenhamos. Acho que chatice é um motivo possível. Já te contei da vez que me colocaram no turno da noite como parceiro de Ted "O Tédio"?

— O policial mais chato da cidade? — Santini sorriu. Existia uma história no departamento de que um assassino calejado confessara uma série de crimes, até então não-solucionados, após ser interrogado pelo detetive Theodore "Ted" Oswald. Meses depois, o criminoso tentou processar a polícia, alegando tortura psicológica durante o interrogatório.

— Esse mesmo. Depois de uma semana, eu não aguentava mais ouvir as histórias e piadas sem graça dele. Faltou um tanto assim — e Madoz aproximou o polegar e o indicador — pra eu descarregar a minha arma nele. Talvez essa Brenda tenha se cansado de tanta chatice e resolveu estourar, literalmente.

— Não acho que esteja seja o motivo da morte de Fogo Selvagem. Por enquanto, o que tenho é apenas um palpite. — a detetive sentou-se diante do computador da sua mesa e começou a teclar — Uma vez que existiu envolvimento de meta-humanos no acidente com Koch, então a ocorrência está registrada em nosso banco de dados. Veja isso.

O detetive curvou-se me direção da tela do computador.

— É, a garota disse a verdade. Uma equipe da IMA roubou mesmo o laboratório STAR no mês passado, mas os Vingadores deram uma surra neles. O que eles roubavam?

Santini apertou algumas teclas. Um aviso sonoro soou.

— Aqui consta como confidencial. O acesso é restrito ao DOE, que assumiu a investigação alegando que tinha jurisdição sobre o caso.

Os detetives sabiam que qualquer assunto envolvendo os Vingadores era investigado por aquela agência federal.

— Do jeito que é a burocracia em Washington, levaremos semanas pra conseguir uma autorização.

Uma sombra encobriu a mesa; era o detetive Clay aproximando-se.

— O laboratório finalmente conseguiu periciar aqueles fios de cabelo. O DNA é de um homem, mas não combina com o de Labareda Fatal.

Santini esfregou as têmporas. Por um instante, pensou em considerar a teoria de Madoz sobre o motivo do crime.

Foi quando algo lhe chamou a atenção na tela.

— Lembra de Sanders dizendo que Koch e um pedestre foram atingidos pela explosão? Aqui tem um link para o prontuário médico deles.

A detetive clicou e duas fichas escaneadas, com data do mês anterior, apareceram; a primeira era de Stephen Koch, a segunda tinha a foto do paciente atendido após o acidente. Era um rapaz de cabelos castanhos, compridos até a altura de seus ombros.

— Parece que temos que fazer uma nova visita ao senhor Eric Baldwin.

— Cadê o maldito reforço? Já deveria ter chegado faz tempo! — Madoz olhou no relógio. Ele e a colega encontravam-se na porta dos fundos do prédio de Eric Baldwin há dez minutos. Uma vez que havia a possibilidade do suspeito ser meta-humano, o capitão Stein ordenara que os detetives aguardassem a chegada de um esquadrão com armamento pesado especial. Cabia apenas aos dois policiais, carregando pistolas com inibidores neurais de baixa potência, verificar se o alvo estava no local e aguardar a chegada do reforço.

— Provavelmente preso no engarrafamento do final da tarde. — Santini respondeu sem olhar para o parceiro, curvada diante da lixeira verde do edifício. O sol morria no oeste, começando a deixar o bairro decadente nas sombras.

— Tá bom. Agora dá pra me explicar por que tá mexendo no lixo que nem uma mendiga?

Santini voltou-se; segurava, nas mãos cobertas por luvas de látex, o que acabara de descobrir na lixeira: uma sacola plástica com o logotipo de uma drogaria.

— Procurando evidências, antes que elas terminem em um aterro sanitário. — e mostrou o interior da sacola. Madoz viu longas mechas de cabelos castanhos, uma tesoura e uma embalagem para tingimento de cabelos, cor loira — Os peritos não terão trabalho em mostrar que o DNA desses fios pertencem ao nosso suspeito e que, por sua vez, combinam com os encontrados em Fogo Selvagem.

— Ei, o que vocês tão fazendo aqui?

Os detetives voltaram-se para a voz. Eric Baldwin estava na porta dos fundos, seu olhar fixo na sacola que Santini segurava.

Madoz sacou a arma do coldre:

— Eric Baldwin, você está preso pelo assassinato de...

A porta explodiu em um brilho azul. Chamas espalharam-se por todos os lados, lambendo as paredes, o chão e o ar. Santini e Madoz saltaram para trás, em tempo de evitar o fogo.

Uma aura flamejante envolvia agora o meta-humano. Sem dizer uma palavra, ele tomou impulso e voou, deixando um rastro azulado no ar.

Os detetives acionaram as armas. Os inibidores neurais, com capacidade de tontear o alvo, não alcançaram Baldwin.

E então a aura diminuiu de intensidade.

— O que tá acontecendo? — Madoz viu o meta-humano aterrissar de forma desastrada a trezentos metros de distância, arrastando-se no asfalto.

Santini, arma engatilhada, correu na direção do suspeito. Este levantava-se, olhando angustiado para as próprias mãos.

— De novo não, por favor...

— Deite-se no chão agora mesmo! — a detetive apontava a pistola para o torso do seu alvo.

O meta-humano virou-se.

— Não era pra ter sido assim.

— É o meu último aviso. No chão, com as mãos atrás da cabeça.

Ele começou a ajoelhar-se, mas de repente parou: seu corpo faiscava centelhas azuis.

Baldwin sorriu e levantou-se.

Santini disparou uma, duas, três vezes; Madoz a acompanhou.

O meta-humano saltou violentamente para trás até cair na calçada, braços e pernas crispados enquanto seu sistema nervoso entrava em colapso.

No bunker, após os detetives lerem seus direitos constitucionais, Eric Baldwin confessou o crime.

— Eu é que deveria ser Fogo Selvagem, não aquele idiota. — ele disse, os pulsos presos em algemas especiais capazes de bloquear suas habilidades pirocinéticas.

Explicou que um mês atrás procurava emprego na Nova Chance para uma vaga de faxineiro. Esperava Stephen Koch retornar do almoço para que este o apresentasse à diretora da ONG.

Mas ele não contava com uma batalha entre super-heróis e a IMA nas proximidades.

— Foi tudo muito rápido. Os Vingadores atacaram, a IMA revidou e de repente algo explodiu. Vi uma luz azulada vir na minha direção e pensei que minha hora tinha chegado.

Koch, no entanto, pulou na frente do amigo e recebeu a maior parte da tal luz. Inconscientes, ambos foram levados ao hospital; Koch ficou em observação por 24 horas, enquanto Baldwin foi logo liberado.

E nos dias seguintes, descobriu que havia algo de errado com seu corpo.

— Minha pele coçava, minha cabeça doía, eu queimava como se tivesse com febre. Achei que ia gripar.

Logo notou que aquilo era mais do que uma gripe quando seus poderes pirocinéticos se manifestaram pela primeira vez.

— A minha grande chance havia chegado. — ele sorriu para Santini e Madoz, sentados à frente dele — Ser um meta-humano era o que ia me tirar dessa porcaria de vida que tenho aqui há dois anos.

Até pensara em um nome: Fogo Selvagem era o apelido da tropa de escoteiros na qual ele e Koch participaram em Ohio.

— E aí eu leio no Clarim Diário que um novo super-herói tinha surgido no bairro, lançando chamas azuladas. — o rosto de Baldwin se contorceu em uma careta de ódio — Adivinha qual era o nome dele?

Não precisava ser um gênio como Reed Richards para ele concluir quem era o novo meta-humano do pedaço. Mas o pior ainda estava por vir: Baldwin descobriu que os poderes recém-adquiridos eram instáveis.

— Numa hora eles funcionavam, noutra não. Enquanto isso, as reportagens sobre Fogo Selvagem aumentavam a cada dia. Aquilo tudo me fez ficar com mais raiva daquele babaca.

Na noite anterior, após uma bebedeira, Baldwin decidiu que já era tempo de enfrentar Koch.

— Esperei no beco e quando ele passou, chamei pra uma conversa. Disse tudo que tinha vontade. De que ele era um bom samaritano idiota, que ele havia roubado meus poderes e minha chance de ser alguém nessa vida. Ele falou que não havia feito de propósito. Aí eu perdi a cabeça e liberei tudo em cima dele.

Fogo Selvagem reagiu e o beco inflamou-se. Mas a pirocinésia de Baldwin esvaia-se com rapidez e ele teve que apelar ao que estava mais próximo: uma barra de metal no meio do entulho.

— Ele não esperava aquilo e eu aproveitei a oportunidade. Quando me dei conta, ele já tava no chão, a cabeça estourada. — Baldwin disse, o rosto sem demonstrar qualquer tipo de emoção — Notei um movimento atrás de mim e vi um mendigo correndo. Tentei ir atrás dele, mas meus poderes tavam esgotados e eu cansado demais.

A chuva começou a cair, apagando o incêndio no local. Percebendo que poderia ser eventualmente reconhecido pelo sem-teto, Baldwin conseguiu ir até uma drogaria 24 horas e comprar tesoura e tintura para cabelo. Depois, foi para casa recuperar as energias.

— Eu era só mais um cara vivendo de subempregos miseráveis nessa cidade e ele roubou a minha chance de ser famoso. Eu é que deveria ser Fogo Selvagem.

— É isso que acontece quando um fracassado cheio de rancor e baixa auto-estima se torna um meta-humano. — Madoz disse para a parceira, sentados em suas respectivas mesas de trabalho no terceiro andar do edifício, meia hora após a confissão. Pela janela aberta da sala, viam o criminoso sendo conduzido para um furgão com destino à ilha Ryker — Eu falei que esses caras são todos esquisitos, não falei?

O ar gelado da cidade penetrava na sala do esquadrão. Santini levantou-se e fechou a janela.




 
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