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Manto e Adaga - Tons de Cinza # 01

Por Eduardo 'Mordred' Viveiros

Medo das Sombras

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"Eu enxergo a noite / Como um oceano / Que banha de sombras / Um mundo de sol."
Zé Ramalho

É noite em Chinatown, periferia de Gotham. Antigamente um bairro chique, abriga hoje a pobreza, atraindo os piores tipos do submundo. Nos becos próximos às docas, uma atividade ilícita é popular: um comércio que alimenta os sonhos de jovens que não têm esperança alguma no futuro, e que só tentam viver o agora.

Mathew é um desses jovens que caminham por aqui hoje. Desolado, ele digere as palavras do seu ex-patrão que, algumas horas atrás, o pegou tirando alguns dólares da caixa registradora. Agora, com o fruto desse pequeno roubo, ele busca a paz nas mãos de conhecidos seus.

— Mas que porra é essa? — diz Mathew. — O bagulho tá o triplo do que eu paguei semana passada!

— Esse é do novo, mermão. Tu só precisa ferver metade do normal, pra viajar muito mais. É alucinante!

— Sei não... Acho que cês tão me enrolando.

— Qualé, mano? A gente não é como os comédia que foram preso semana passada — o outro traficante entra na conversa.

— Aqui, só pra tu, que é meu irmão de sangue. Vai levar uma dose de graça, na boa. Se curtir, cê paga. Senão, não tem galho.

Antes que o traficante passe o saquinho de pó branco às mãos de Mathew, as sombras sujas do fundo do lugar tomam vida, e um homem parece nascer das trevas, coberto por uma grande capa, bloqueando a saída do beco. A fúria pode ser notada na entonação da voz.

— Onde está Simon Marshall?

Os traficantes, apavorados, logo se lembram das histórias que surgiram no submundo durante os últimos anos. Lendas de um homem, vestido de negro, que combate o crime na cidade. Alguns dizem que é um morcego gigante; outros, que é um monstro, um demônio... A única unanimidade é que quer encontrá-lo pela frente. Os dois sacam as pistolas que sempre carregam e ameaçam o estranho.

— Eu não sei quem é você, mano. Mas tu não vai me levar pros gambé, não.

— Eu posso fazer muito pior com você, seu merda. Diga-me onde está seu patrão agora!

— Sai fora, cara...

O homem se aproxima, e sua capa parece tomar todo o beco. Dentro dela, trevas que parecem respirar. Um dos traficantes atira, mas as balas não surtem efeito algum. Ele começa a gritar, como uma criança assustada, até ser engolfado pela escuridão, que abafa seus gemidos. Mathew e o outro traficante, aterrorizados, saem correndo para lados diferentes.

O expresso NY-Gotham chegou à Estação Robinson há poucos minutos. O trem velho, em sua calma característica, carrega diariamente dezenas de almas perdidas entre as duas cidades, tão próximas em espírito. Esta noite, porém, ele trouxe a Gotham uma alma especial, que estava ficando desesperada com a lentidão da locomotiva. Esta alma é Tandy Bowen, também conhecida como Adaga. No fundo do seu ser, ela carrega um poder abençoado, uma luz mística que pode atingir as mais profundas trevas, trazendo o melhor delas à tona.

E é alguém muito especial que a fez vir até Gotham. Apertando o casaco barato contra o corpo para se proteger do frio cortante, ela pensa em Tyrone, seu amigo e companheiro. Ao contrário dela, Tyrone recebeu o poder das trevas, a escuridão do castigo às almas desesperadas, e se tornou Manto.

Os dois convivem com esses poderes especiais há nem três meses, mas já têm alguma noção do que podem esperar. Tandy sabe muito bem que Ty, pouco a pouco, será consumido pelas suas trevas interiores e, se não tiver a luz de Adaga para apaziguá-las, perderá pouco a pouco sua mente. E sua humanidade.

Pela ligação entre os dois, ela pode sentir o desespero da alma de Manto, que está sendo tragada pela escuridão. Enquanto caminha para fora da estação, ela roga para que não seja tarde demais.

A noite está calma no Montego Bar, um dos redutos da marginalidade em Chinatown. Homens bebem aos negócios perdidos e às mulheres desejadas, alguns comemoram ofertas tentadoras enquanto outros apenas bebem. Um grupo joga sinuca distraidamente, enquanto três engravatados fechavam acordos escusos nas mesas ao fundo. O marasmo do cenário é interrompido pela chegada de Zeck, que entra ofegante pela porta. O sino preso ao batente ainda tilintava quando ele encosta no balcão, pedindo uma bebida ao dono do bar.

— Porra, Monty! Tu nem imagina o que eu vi. Nem eu acredito ainda — disse ao barman, esvaziando o copo. — Enche essa coisa de novo!

— Calma, cara. Respira fundo e me conta o que houve.

Zeck agarrou o barman pelo colarinho, fazendo-o derrubar um pouco da bebida no balcão.

— O Batman aconteceu, cara! Aquela porra daquele morcego que tá andando por aí!

A simples menção do nome é suficiente para paralisar toda a atividade no bar. Qualquer conversa é interrompida. O único barulho é o de uma bola de sinuca rolando contra a camurça verde. Zeck continua gritando, diante do olhar incrédulo e assustado dos presentes.

— Tô falando sério! Eu tava negociando com o Chad lá perto do cais, quando o cara apareceu do nada. O nego é enorme! Mais de dois metros, dentro daquela capa escrota. Veio gritando, procurando um tal de Simon, até que pulou em cima do Chad. Sei lá o que aconteceu, mas o coitado parou de gritar quando eu saí correndo de lá.

— Cê tá chapado, Zeck. Conta outra!

— Tô chapado, o caralho! Eu vi, posso jurar procês. O tal Batman existe mesmo, e tá caçando a gente lá fora!

Um burburinho toma conta do lugar. Cada um faz sua suposição dos fatos, enquanto conferem discretamente suas armas presas junto ao corpo. Ninguém percebe quando Fósforos Malone deixa o lugar, mastigando seu palito característico sob o bigode. Ele não gostou nem um pouco do que ouviu.

Tandy caminha lentamente pelo centro de Gotham. Apesar da semelhança entre aqui e Nova York, ela não está confortável, sentindo-se como uma alienígena entre os gothamitas. Com isso, nem percebe que está saindo do centro da cidade, indo em direção ao subúrbio.

Só percebe o perigo potencial quando é cercada por cinco rapazes, visivelmente com más intenções. A luz interior de Adaga cintila, em sinal de perigo. Ela se encolhe dentro do casaco, apertando a bolsa com os braços. Um dos rapazes, que parece ser o líder, aproxima-se dela, com um sorriso cínico no rosto.

— Oi, loirinha. Sabia que é muito perigoso andar por essas bandas sozinha? — os outros membros da gangue riem. Eles sabem o que vem a seguir.

— Não me toque... — a pretensa coragem de Tandy não convence. Por algum motivo, ela demora a reagir.

— Uau, a cadelinha é corajosa! Sinto muito, amor, mas você está na nossa área. E aqui, você faz o que a gente quer. Certo rapazes?

O grupo grita em coro, concordando. O líder avança e coloca as mãos firmes nos ombros de Tandy. Ele se prepara para dizer algo, até que sua mão esquerda é trespassada por um objeto de metal. Uma voz soa por trás do grupo.

— Tire as mãos da garota! Agora.

Um homem está sobre o teto de um pequeno edifício próximo. Empoleirado como uma gárgula, uma capa negra cobre todo seu corpo, esvoaçando com o vento forte. A máscara que usa completa o conjunto, explicitando apenas uma boca humana.

— Qual é a sua, cara? Essa aqui é a minha área! — o líder, mesmo ferido, continua ameaçador. — Não sei de que festa de halloween tu saiu, mas é melhor voltar pra lá, antes que a gente te machuque.

— Estava esperando que você dissesse isso... — o homem pousa silenciosamente no chão, resultado de anos de treinamento, e assume posição de luta. — Pode vir.

Como hienas defendendo a matilha, os membros da gangue atacam desordenadamente. O primeiro cai com um chute na barriga, derrubando também o segundo que vinha logo atrás. O terceiro tenta acertar um soco no rosto de seu adversário, que abaixa-se no último momento, levantando-se logo depois e jogando o rapaz para trás pelas pernas. O último, confiante demais no facão que carrega, percebe que devia ter treinado mais com sua arma, ao ter seu pulso quebrado no primeiro golpe. Um soco no peito acaba com o serviço, restando apenas o líder.

Aprumando dois socos ingleses nas mãos, o líder do grupo tenta demonstrar uma posição de coragem, mas o homem de capa pode distinguir o medo estampado nos seus olhos. O rapaz ataca. Seus dois socos consecutivos são bloqueado pelas mãos do encapuzado, que agora prende seus pulsos, demonstrando sua força superior. O estranho de negro sorri.

— Você é patético. — diz ele, antes de dar uma cabeçada no nariz do rapaz, que cai.

O vigilante se volta para Adaga, que não se moveu desde que tudo começou. Ele se aproxima, e toca o ombro ferido.

— Está tudo bem. Foi só um corte. — ela diz, mas a figura imponente do homem de capa a impede de se afastar. Ele está perto agora, olhando fixamente para seu rosto. Seus dedos enluvados tocam a marca que Adaga carrega no olho direito.

— Pelo visto, você poderia ter defendido sozinha, não?

— Não sei do que você está falando. — ela recua ao toque e começa a andar na direção contrária.

— Você é Tandy Bowen, cerca de 18 anos. Recebeu poderes em uma experiência química com drogas e se tornou Adaga, uma vigilante de Nova York.

As palavras fazem-na parar e se virar, assustada.

— Como você sabe de tudo isso?

— Eu sei de muitas coisas — ele se aproxima de Adaga novamente, com sua posição sempre intimidadora. — Sei também que você costuma andar com um rapaz, Tyrone Johnson, que recebeu poderes contrários ao seus, mas igualmente perturbadores. Ele controla as trevas interiores, e adotou o nome de Manto. E, pelo visto, ele não veio com você para cá.

— Quem é você?

— Eu sou Batman, garota. E Gotham é a minha cidade. — os olhos dele se apertam, demonstrando impaciência. — Sendo assim, não tolero vigilantes nesta cidade, entendeu bem? Já temos problemas demais, espero que você não venha me trazer mais.

— Acredite em mim, senhor morcego, — a coragem tomou conta de Adaga novamente, que agora aponta os dedos contra o símbolo que Batman carrega no peito — eu não vim para este lugar por vontade própria. Tenho bons motivos para acreditar que Manto está em algum lugar por aqui, e vim apenas para salvá-lo das próprias trevas. Portanto, pode pegar a sua cidadezinha gótica e enfiar...

Batman coloca sua mão sobre a boca de Tandy, fazendo-a se calar.

— Cuidado com o que fala. Eu... — suas palavras são interrompidas com um brilho no céu. O batsinal oscila entre as nuvens, vindo da delegacia central. — ... preciso ir agora, tenho coisas a resolver. Mas estou de olho em você, Adaga. Lembre-se: aqui quem manda sou eu.

O Homem-Morcego corre até o fim da rua, logo desaparecendo em algum beco, deixando Adaga para trás, junto com cinco marginais desacordados. Ela pega sua mochila e volta a andar, pensando em Manto.

Um galpão abandonado é perfeito para operações escondidas, e Simon Marshall sabe muito bem disso. Desde que abandonou suas ações em Nova York e veio para Gotham, ele se sente muito mais seguro. Agora está longe daquele monte de heróis fantasiados humanitários, que se metem onde não devem. Isso não existe em Gotham, onde as pessoas parecem ter medo da própria sombra.

Ele anda de um lado para o outro, no seu escritório improvisado dentro do galpão. Segurando um pequeno gravador contra o rosto, ele registra seu diário.

— O potencial do comércio de drogas em Gotham é enorme e, arrisco dizer, muito maior do que em Nova York. O alto índice de criminalidade da cidade é perfeito para encobrir minhas ações. Nenhum dos traficantes sabe para quem trabalha, graças à rede de comércio que montei para vender minha droga. O fruto, que está ficando conhecido nas ruas como Impulso, é muito mais forte do que a heroína comum, e mais concentrado do que a droga que estava experimentando em Nova York. Ao que parece, cheguei ao nível viciante perfeito, por um preço ínfimo. Tudo o que...

Os pensamentos do químico são interrompidos pela entrada brusca de um de seus assistentes, que entra gritando.

— Seu Marshall! Tamos ferrados!

— Mas que diabos! O que aconteceu, homem?

— É que eu tava lá no Montego até agora pouco, quando um dos nossos homens entrou no bar, gritando que tinha sido atacado pelo Batman! O Batman, seu Marshall!

— Ora, faça-me o favor. — Simon ri. — Esse tal de homem-morcego é história para assustar criancinhas desobedientes.

— Sei não, seu Marshall. Tenho muito camarada que já foi pra cadeia por causa dele.

— Certo. Ainda assim, o que isso tem de tão preocupante?

— Pelo que o cara falou, o Batman tá procurando pelo senhor por aí! Não vai demorar muito até ele chegar aqui. Tamos ferrados!

— Calma, homem.... — Simon apóia-se na mesa, olhando suas anotações espalhadas. — Isso pode ser interessante.

— O quê, seu Marshall?

— Faça o seguinte: espalhe por aí que eu estou esperando o morcego. Faça com que o endereço deste galpão chegue aos ouvidos dele.

— Mas, seu Marshall...

— Faça o que mando, diabos! Confie em mim. Esse Batman não vai nos fazer mal algum. Vou armar uma emboscada para ele, e utilizar sua figura como troféu. Serei conhecido como "o homem que matou o Batman", e este submundo será meu em dois tempos.

James Gordon está quase desistindo de esperar. O vento está frio demais no telhado da delegacia, e seu cachimbo não está ajudando em nada. O sobretudo velho nem mesmo parece estar lá. "Ele não vem mais," pensa, enquanto desliga o projetor do batsinal. Vira-se para voltar para dentro da delegacia e dá de cara com Batman, parado entre ele e a porta.

Agh! Odeio quando você faz isso. — diz, enquanto recolhe o cachimbo que caiu e tenta acendê-lo de novo.

— Olá, Jim. Algum problema?

— Bem, pode-se dizer que sim. Nas últimas 24 horas, três traficantes foram encontrados em Gotham, mentalmente abalados. Achei que você ia gostar de saber disso.

— Mentalmente abalados?

— Sim. Só falam frases desconexas, não lembram nem mesmo seu próprio nome. Todos com sinais de forte espancamento. Droga de fósforo...

— Eles repetem algum padrão na fala?

— Sim. Na maior parte do tempo, balbuciam algo sobre trevas, escuridão. Chegam a gritar desesperadamente, se os deixamos em salas no escuro.

— Acho que sei como resolver isso. Mantenha seus homens fora do caso por enquanto, Jim. Por segurança deles.

— Certo, você manda. Um detalhe interessante é que todos estão alegando que foram atacados pelo... — Gordon corre para pegar a caixa de fósforos, levada pelo vento para um canto do telhado. — ... Batman?

Ele não está mais lá.

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