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Matrix Especial

Por Rony Gabriel

Lembranças

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A carteira de motorista de Fábio foi uma de suas maiores conquistas. Isso fez com que ele se tornasse amigo do grupo que mais inventava coisas para fazer nos finais de semana. Neste último, por exemplo, Fábio resolveu emprestar a chácara dos tios para juntar os amigos e assistir a alguns filmes de terror, tomar um pouco de vinho quente e se reunir ao redor de alguns jogos de tabuleiro.

— Gente! Aluguei aquele filme em que um grupo de estudantes morre no meio. — disse Fábio aos amigos.

— Estou com um medo que vocês nem imaginam... — brincou Débora, a mais velha e metida a durona.

— Olha eu vou levar uns sacos de pipoca. Nenhum de vocês lembrou de cuidar disso. — avisou Jorge.

— Certo, gente. Mas, Fábio, vamos logo porque a estrada pra chácara dos seus tios é meio escura. — disse Franciele, a loirinha — Eu não quero correr nenhum risco!

E logo partiram para a chácara, que ficava a quarenta minutos da cidade. Depois de percorrer parte de uma interestadual, era preciso pegar uma pequena estrada mal-asfaltada. A tal estradinha passava por um bosque, úmido e gelado, mas com um agradável ar de montanha.

— É bom sair da cidade para relaxar um pouco. — lembrou Fábio.

A turma havia acabado de sair da semana de provas e todos haviam resolvido passar o sábado e o domingo descansando na chácara. Partiram na sexta, por volta das cinco da tarde. Tudo correu como planejado. Assim que pisaram no local, botaram o vídeo para funcionar.

Uma esquisitíssima história de terror. De medo ou de agitação, ninguém dormiu.

Depois de muitos Coronéis Mostarda com a chave inglesa no salão de jogos e muitos pagamentos de aluguéis no Morumbi e na Vieira Souto, os garotos se cansaram e foram dormir. Só acordaram depois das quatro da tarde do dia seguinte. Passaram mais uma noite assistindo a alguns filmes e jogando, até que na tarde do domingo partiram de volta para a cidade. As cenas dos filmes e as situações do tabuleiro se misturavam nas mentes de todos durante a arrumação das malas.

A estrada estava limpa, pois havia chovido na noite anterior. Mas, de qualquer forma, o asfalto era muito ruim. O pequeno carro de Fábio pulava muito, o que dificultava a direção. O carro derrapou algumas vezes na lama por cima do asfalto e Fábio já estava bem assustado. Nunca tivera tanto medo ao volante.

Apesar de tudo, conseguiram chegar até a interestadual. Fábio, com um alívio no peito, sentiu que dali em diante a estrada ficaria melhor e mais tranqüila para se dirigir. Mas carros levam a enganos desastrosos...

Fábio dirigia por um pedaço especialmente ruim da estrada. Embora a visão das montanhas além dos limites do horizonte fosse bela e o pôr-do-sol oferecesse um espetáculo rosado, com nuvens branquíssimas, Fábio mal tirava os olhos da pista. A responsabilidade da vida de seus amigos era dele e sempre havia ouvido muitas histórias de jovens que voltavam de viagem e morriam em acidentes.

— Comigo, não! — exclamou quando este pensamento veio à sua mente.

Para o bem e para o mal, estava certo. Com ele, não. Somente com ele não...

O carro passou por um buraco cheio de água, que não parecia ser tão fundo. A roda do carro se soltou e um caminhão que vinha na direção contrária não conseguiu desviar.

A mãe de Fábio não pôde ir aos enterros de Débora, Jorge e Franciele, pois iria orar por seu filho, na UTI do hospital da cidade. Somente Fábio havia sobrevivido e a senhora se achava na obrigação de agradecer aos céus por isso e exigir mais um pouco de sua fé.

"Comigo, não!..." A frase ecoou na mente de Fábio e foi somente nisso que ele conseguiu pensar.

Ele saiu da UTI, mas ainda não sabia disso.

Ele foi visitado pela mãe de Fran, mas não sabia disso.

Ele estava em casa, mas não sabia.

Se completaram três meses que ele estava em casa e ele não sabia de nada disso.

Fábio ficou tetraplégico, cego, surdo e mudo. Um verdadeiro vegetal. Sobrevivia a muito custo, principalmente graças aos cuidados de sua mãe. Ela chorava todos os dias ao lado do filho, pois sabe que ele só podia pensar ou visitar suas lembranças. A realidade não existia mais para ele.

Talvez nem para ela.

"Acordei novamente. Nem faço idéia de que dia é hoje. Nem faço idéia de onde estou. Se estou na varanda, no quarto ou na sala. Se estou deitado ou sentado. Se estou vivo ou morto."

"Talvez morrer seja isso. Ficar pensando. Ter tempo eterno para pensar. Mas algo me faz crer que eu estou vivo, em algum outro lugar. Será que a turma também está por aí? Bom, por hora estou sozinho mesmo. Gostaria de acordar desse pesadelo..." — e seu pensamento foi interrompido por uma sensação de afogamento.

Seus olhos doíam e ele notou que estava numa cuba de vidro, coberto por uma geléia avermelhada. Seu corpo estava nu, exceto por cabos e plugues.

Mal havia acordado, os cabos começaram a se desligar de seu corpo. A dor das desconexões era algo que ele não sentia há tempos. Embora um incômodo, ele gostou de sentir aquelas dores. Neste momento, a base da cuba foi aberta e Fábio caiu em direção aos esgotos.

Notou luzes sobre sua cabeça e foi resgatado por uma tenaz de metal.

— Bem-vindo à nave Benjamin, jovem.

— Estou vivo?

— Sim. Acho que nunca esteve tão vivo como hoje estás. Vamos, levar-te-ei até um local confortável para que repouses.

Ao acordar, o mesmo rosto calmo e sereno que o havia recepcionado estava ao seu redor, com agulhas e pinças.

— Vocês são médicos? Eu fui recuperado? — indagou Fábio.

— Eu sou Seed. Tu estás livre. Isso é o mais importante agora. Pouco sabemos sobre ti, mas quando estiverdes pronto para nos contar, eu explicar-te-ei de uma maneira melhor. Relaxe, pois estamos reabilitando teu corpo e tua saúde.

— Então, você sofreu um baita acidente? — perguntou uma mulher bela e exuberante, que Fábio descobriu se chamar Plethora.

— Sim, bom, o que eu lembro é isso. Daí pra frente, tudo fica confuso.

— Certo. Proxy, encontre dados recentes sobre algum jovem em estado vegetativo. — disse Seed, o homem claro e calmo que havia salvo Fábio.

— Senhor, acho que encontrei. Mas gostaria que o senhor visse isso pessoalmente. — respondeu o negro de olhos miúdos que ficava nos teclados e monitores.

Quando todos olham, vêem um rapaz idêntico a Fábio. Fábio sabia que era ele, por causa de sua mãe ao seu lado, chorando.

— Mãe! Mãe! Eu quero falar com ela! Eu quero... — e atacou o operador, tomando seu fone e tentando falar com a mãe pelo microfone.

— Calma, menino! Ela não pode ouvir. Calma. Me devolve isto. Pronto.

— É minha mãe... é minha mãe...

— Tu deves estar confuso. Assim estamos todos. Tu és aquele à cama? Serias teu quarto?

— Sim. Mas como isto... é um vídeo?

— Não. É você. Dentro da Matrix. Ou, pelo que entendo, seu corpo virtual.

— Bem, vocês me explicaram tudo isto, mas algo está errado, não? Pelo que vocês disseram, as pessoas saem voluntariamente, correto?

— Bom, ouvimos falar num tal garoto, que foi trazido por Neo para Zion. Mas até hoje acho que somente ele pôde sair da Matrix sem ser desplugado voluntariamente. — disse Plethora.

— Cara, temos uma anomalia do sistema aqui! — exclamou Job, um dos tripulantes, e aparentemente o mais forte.

— Calma, todos. Nós temos que desvendar este mistério. Que tu achas que ocorres, Proxy?

— Senhor, acho que ele foi excluído da Matrix, embora o sistema acredite que ele ainda esteja conectado.

— Exatamente o que havia eu imaginado. Vejamos se esta teoria tem fundamento. Carregue-nos para dentro da Matrix. Proxy, mantenha teus olhos no garoto que está vegetando.

E todos se dirigiram para as cadeiras.

Já dentro do sistema, Seed comentou algo sobre se dirigirem até onde ficaria a casa do garoto.

— Tens fé de algo de diferente ter acontecido, Plethora?

— Não sei, não, Seed. Mas acho que temos algo que a Matrix ainda não sabe.

— Filho, tens medo?

— Não sei. O que Proxy diz? Minha mãe ainda está lá?

Pelo celular, uma voz se fez ouvir:

— Senhor, o garoto continua como estava. Isto mesmo depois dele entrar novamente na Matrix. — disse Proxy ao celular.

— Diz-me ele que está tudo normal...

— Senhor! Os agentes estão invadindo a casa dele.

— Rápido, Plethora! Para a casa do menino o quanto antes!

— Que foi! O que está acontecendo lá em casa?

— Calma. Nós resolveremos, jovem.

Ao chegarem à casa de Fábio, os agentes já estavam à sua espera.

— Então está aí, jovem Fábio — disse um dos homens, de terno cinza e ponto eletrônico no ouvido.

— Rápido! Distrairei eles; tu corras com o menino para um local seguro!

— Vem, garoto! — e Plethora tentou puxar Fábio pelo braço.

— Não! Minha mãe! — Fábio se desvencilhou de Plethora e correu para dentro de sua casa.

Droga!

Mãe!!!

Os agentes correram para agarrar Fábio, que conseguiu driblar um deles e chegar à porta do quarto. Ao abrir, sua mãe viu os dois Fábios, um na cama, e outro na porta. Tudo parou, o momento pareceu congelar, e a imagem de um senhor austero e sério, num terno branco, com um ponto eletrônico no ouvido e um mata-moscas na mão, apareceu em seu quarto. As paredes ganharam tons de verde e tudo era recheado pelos caracteres da programação da Matrix.

— Menino... volte pra sua mãe. — disse o senhor.

— Como assim? O que está acontecendo?

— Um travamento. Você ocasionou uma parada crítica em parte do sistema da Matrix. Nada muito complicado, mas como trabalho para o sistema corrigindo erros, tenho a obrigação de dar fim a este erro e prosseguir com a execução do sistema.

— Que erro foi esse?

— Você está com duas auto-imagens residuais no sistema. Seria como entrar como o mesmo usuário duas vezes numa rede.

— E quem é você para me aparecer aqui e me falar essas coisas?

— Meu nome é Fix. Eu sou um programa corretor de erros da Matrix.

— O que eu devo fazer, então?

— Selecionar qual dos dois usuários você quer continuar usando. Este, de quem apagarei as lembranças da realidade fora da Matrix, levantarei desta cama e farei andar, falar e realizar todas as outras facilidades; ou este aí, o qual, devido às flutuações matemáticas que seguem junto ao erro, pode vir a ficar incapaz de entrar dentro do sistema. Isso sem contar que este último me dará mais trabalho, pois terei que corrigir as memórias de muitas pessoas.

— Correção de memórias? Como assim?

— Terei que modificar as lembranças de todas pessoas que te conheciam, pois não posso fazer com que um tetraplégico desapareça simplesmente. É necessário que todo o sistema acredite que você teve um fim. Mas, sinceramente, acho que é mais fácil fazer um tetraplégico voltar a andar e viver normalmente.

— Bom... Minhas opções são voltar a ser o que eu era antes do acidente ou continuar com os rebeldes?

— Sim. Voltar a sua vida com sua família e seu futuro, ou viver esta outra — que acho que não durará muito.

— Você quer que eu escolha entra a mentira e a verdade? Eu fico com a verdade! Que você tenha muito trabalho, sua máquina maldita!

— Você escolheu... — e Fix sumiu, assim como o corpo de Fábio desapareceu da cama.

Neste momento, a mãe de Fábio desmaiou e o ambiente voltou ao normal. Os agentes abriram a porta e entraram no quarto, olhando em volta como se procurassem algo que não soubessem, como se não tivessem notado que Fábio estava ali. Alguma parte do erro ainda estava lá e Fábio ainda carregava esta porção.

Mãe! Mãe! — Fábio gritava, com a mãe nos braços.

Na mente dela, neste momento, foram alteradas todas as lembranças que tinha de Fábio, assim como aconteceu nas mentes de todos que o conheciam. Nas mentes de todos foram escritas novas lembranças: de uma morte, um enterro e algum tempo de vida cotidiana sem a presença de Fábio.

— Minha nossa. Que dor de cabeça... quem é você?

— Eu? — Fábio percebeu que as lembranças que ela tinha dele haviam sido profundamente alteradas — Eu estava aqui, conversando com a senhora... sobre seu filho.

— Nossa... me parece estranho. Quanto tempo fiquei desmaiada?

— Quase nada. Acho que foi por causa do calor. Está quente hoje, não?

— Pois é. Mas, me ajude... Quem é você?

— Um grande conhecido de seu filho, embora acredito que a senhora não se lembre de mim.

— Não, mesmo. Mas, estranho... Me parece que sonhei com essa cena... qual é o termo?...

Déjà-vu.

— E qual é seu nome mesmo?

— Pode me chamar de Bug.



 
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