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Por
Rony Gabriel
Anjo Caído
O odor do banheiro do estabelecimento é degradante,mas mesmo assim os freqüentadores não notam que urinam pelo chão, contribuindo ainda mais com a boa higiene do local. Local este que se mostra péssimo para a freqüência de um pai de família. Pai de família este que deveria estar velando o sono de seu filho, dormindo com sua esposa, no aconchego de seu lar.
Embora esses valores devessem ser seguidos, este pai não se lembra de que tem um filho, que tem uma esposa, nem sequer que tem um lar. Ele só lembra que ainda lhe restam alguns trocados no bolso, que lhe valem mais uma dose de aguardente com limão.
O seu filho, um pequeno garoto de uns dez anos, mal sabe por que o pai não chegou ainda. Neste exato momento ele dorme, sonhando algo, algum momento feliz que gostaria de ter. Mas no sonho desse menino lhe vem à lembrança o dia anterior.
Sonha com um desenho que fez na escola.
Semelhante ao seu dia, no sonho a professora pede que todos desenhem a si mesmos com os pais. Ele assim o fez, e no sonho os traços começaram a tomar vida. Ele corria aos braços da mãe tão amada, porém seu pai entrava em seu caminho, levantava a mão para sua mãe e a agredia. O sonho virou pesadelo, e o menino neste momento acordou.
Um barulho veio da cozinha, e o menino não sabe se acordou pelo susto do pesadelo, ou pelo estardalhaço que acontece em sua casa. Não sabe a hora, mas tem uma noção de que é avançada a madrugada.
No relógio de mesa, caído ao chão, a mãe vê que são por volta das três da manhã. Ela tenta pegar o pequeno objeto, porém só lhe resta o tempo de virar o rosto para não tomar um soco diretamente na fronte. O pai bêbado tenta atingi-la novamente, mostrando a sua ignorância e brutalidade perante a pessoa que deveria ser sua companheira.
O menino acordado ouve o gemido de dor da mãe. Ele imagina o que acontece, e mesmo em seus poucos anos, entende que seu pai é o vilão deste problema. Agarrado ao cobertor velho e desfiado ele se agacha próximo à porta, com os olhos já molhados. Fica escutando aqueles barulhos que constantemente o fazem acordar durante a noite. Chega um certo momento que cessam os gemidos, e inicia-se um choro engolido, uma dor mal expelida. Com isso ele deduz que o pai parou com sua violência noturna.

Pela manhã a mãe tenta abrir a porta do quarto do menino. Ele, ainda dormindo junto à porta, todo encolhido, não notou que pegou no sono naquele pequeno canto aonde suas lágrimas caíram. Sua mãe com cuidado o chama, e pede que ele se levante. É manhã, e ele tem que ir para a escola.
O menino acorda, com os olhos inchados, seja pelo do mau sono ou pelo choro por sua pobre mãe. Ele, ao ver a face da mãe castigada pela brutalidade conjugal, pergunta se o pai já foi trabalhar. A mãe responde positivamente, e ele se sente um pouco mais aliviado. Termina de vestir o uniforme, pega a pequena mochila jeans surrada e parte para escola.
O menino tenta bloquear na sua cabeça todo aquele problema. Tenta esquecer o som covarde das agressões de seu pai, a imagem do rosto machucado de sua mãe, o seu próprio choro pelo flagelo materno. Mas, mesmo sendo um menino, não consegue acabar com o rancor que sente. Imagina-se fazendo as piores coisas para acabar com tudo isso. Infelizmente, um menino com apenas dez anos consegue desejar a morte do próprio pai.

Passaram-se alguns poucos dias, e o problema noturno se repetiu. O garoto vai novamente à porta, e começa a chorar. Os gritos da mãe, vindos da cozinha, são mais altos hoje, e ele nota que a violência do seu pai está superando-se nesta madrugada. Ele fica na espreita da porta, morrendo de medo e de angústia, quando se lembra do que tinha pensado como solução deste problema. Lembra-se de que queria ter uma arma, um revólver, qualquer coisa que possuísse balas, para acabar com todo esse sofrimento. Neste mesmo momento, ouve um estampido de tiros e janelas quebrando. Perde o medo, abre a porta de seu quarto e através do corredor consegue ver o pai, com sua mãe desacordada nos braços, olhando para umas das janelas quebradas.
A coragem do menino ultrapassa o patamar natural que sempre seguiu, e ele resolve confrontar o pai. Ao chegar à cozinha, o telefone começa a tocar, e surge a imagem de uma mulher em trajes negros, que salta pela janela, seguida de novos tiros. O pai se abaixa, coloca a mãe no chão e o garoto é empurrado para o lado pela mulher que surgiu. Ela salta e atende ao telefone. Nisto um homem de terno cinza aparece, atira novamente na mulher, que desaparece inexplicavelmente. As balas não acertam o alvo, mas atingem no ombro o pai do garoto. Ele, bêbado, nem sente a dor, mas o homem de cinza pára ao notar que nada mais pode fazer para capturar aquela que perseguia.
O garoto nota a pistola na mão do homem, e corre em sua direção. O senhor em trajes cinzas não entende, até que o menino o desarma, tomando sua pistola. O garoto, ainda ofegante pelo que aconteceu, aponta a pistola ao peito de seu pai. O pai grita para ele não fazer isso, mas sem hesitar o menino aperta o gatilho seguidas vezes, descarregando o restante de balas da arma no tórax de seu pai.
O menino solta a arma, trêmulo, se lança ao chão e começa a chorar. Imagina a mãe morta, e todos seus sonhos destruídos. O senhor de terno chega próximo ao menino, pega a pistola do chão, e se dirige a ele:
Intrigantes são os humanos. Onde um adulto era covarde, uma criança é corajosa. Por sorte não existem muitos humanos como você, ou estaríamos perdidos. Ande, ligue para algum lugar, pois sua mãe ainda está viva.
O garoto pega o telefone, disca para a polícia, e antes de ser atendido pela voz do outro lado, o senhor se despede:
Sei que o verei novamente, e que neste dia você me dará trabalho. Até breve. - e o senhor vai embora, saindo pela porta da frente da casa do garoto.

Meses depois, quando já recuperado do evento traumático, o garoto está novamente entre os amigos de escola. Tem um sorriso novo no rosto, e uma sensação de alívio pelo fim da tortura psicológica em que vivia. A professora entra na sala de aula, com vários lápis e canetas, e diz que teriam uma atividade artística.
Todos os garotos se entusiasmam desenhando o que a professora solicitou. Todos desenham, mostram suas pinturas e conversam entre si. Asas, auréolas e feixes claros em tons azuis e amarelos. Mas o nosso menino está calado, compenetrado em seu desenho. A professora solicitou a todos que desenhassem anjos. Nosso menino, lembrando de seu protetor, não se atém a desenhar o mito padrão dos mais diversos grupos religiosos. Ele desenha algo que aparenta ser alguém de óculos escuros, terno cinza e gravata.
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