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Por
Octavio Aragão
Insone
"O vapor está embaçando as lentes dos óculos. O café é péssimo, como
sempre, mas, graças a Deus, tenho uma garrafa térmica cheia. As
instalações são precárias. Como conseguimos ir adiante com um
projeto tão meticuloso, que exige tanta precisão e acuidade, dentro
de um ambiente tão sujo? Há areia do deserto em todos os consoles,
todos os painéis de controle."
"Estou há duas noites sem dormir. Eu e toda a equipe. Homens e
mulheres sonâmbulos pelos corredores, trabalhando sem parar, cheirando
a graxa e coisa pior (sim, porque o banheiro está entupido há mais
de uma semana e ninguém tem tempo suficiente pra dar atenção a uma
coisa tão insignificante quanto merda flutuando no reservado
masculino. Não é preciso dizer que a segurança aqui é tão alta que
não há pessoal encarregado da faxina). Os militares estão pressionando
nossa equipe. Querem resultados, e eu, que chefio o projeto, sou
o pára-raios. O mais cobrado de todos."
"Olho para a superfície do líquido preto dentro da caneca de latão.
Ainda sou eu. Mais feio, descabelado e com olhos miúdos boiando em órbitas
escuras, mas ainda eu. Bebo um gole do meu reflexo. Amargo. Meu gosto é
horrível. Consegue ser pior que meu cheiro. Mau cheiro. Como o do
banheiro masculino."
"Os óculos embaçam totalmente. Estou em meu quarto, aos dez anos.
O café tomou conta de tudo e a única luz que resta vem por baixo
da porta. No canto, encolhido, trêmulo, sei o que acontecerá. Não é
um sonho, é uma recordação, e lembranças não trazem novidades,
apenas repetições. Não me espanto com a porta que subitamente se
escancara, mas grito assim mesmo. Porque tenho de gritar. É a única
coisa que posso fazer além de sangrar."
"A silhueta é enorme. Recortada em frente à porta, separada da realidade
pelo umbral, ele me encara e sua voz, mesmo sussurrada, encobre meu
grito. Ele fala e minha garganta arde. Repete a mesma ladainha de
sempre, diz que sou um fraco, que puxei à minha mãe, que não sou
homem. Eu me encolho mais e mais, tentando segurar as lágrimas.
Tenho de provar que ele está errado, suportando tudo sem chorar."
"A última frase vem, como sempre. Trata-se de uma ordem e eu obedeço.
À essa altura não há mais luz, apenas o brilho da fivela do cinto.
Uma fivela fascinante, com dois pinos que perfuram dois furos
paralelos no couro reforçado. Um cinto de homem, sem dúvida.
Mastigo essa imagem para escapar da dor e decoro cada centímetro
da tira, cada ruga, cada imperfeição. Oito furos. Quatro pares.
Dois a dois. Em seqüência. Paralelos. Que nunca se encontram.
Para sempre. Juntos, porém separados. Mesmo que se odiassem, nunca
se afastariam."
"A dor acaba. A imagem se transforma e o café já não inunda o
universo. Agora, é uma floresta linda, mas impenetrável."
"Tenho vinte anos. Estou no carro verde-oliva com ela, no banco de
trás, e posso ver a floresta, tocar as folhas e o orvalho. Mas é
só. Minhas calças parecem que vão explodir e eu imploro, estou fora
de mim."
"Não. De jeito nenhum. Eu estou pensando que ela é o quê? Não
penso nada. Minha cabeça é um branco total. Não, branco, não. Branco é
cor de pureza, de mulher. Outra cor. Minha cabeça é outra cor.
Minha cabeça é da cor da frustração, da inveja e da impotência. Não
só minha cabeça, a cor sou eu."
"Não há mais carro, não há mais ela, não há mais eu. Apenas a
floresta resiste, forte, inviolável, sem fim."
"A mão sacode meu ombro e eu levanto mais rápido do que a outra
pessoa esperava. É ela. Ao fundo, uma sirene berra como se anunciasse
o fim do mundo e eu, o último passageiro a embarcar, estivesse
atrasando o barco. Os óculos, totalmente transparentes, estão
largados sobre a mesa, ao lado da xícara fria."
Está na hora. Se o general pega você aqui é capaz de lhe dar
uma surra.
"Eu sinto a floresta recuar para dentro de mim, junto com toda a
raiva. A cor se vai, a calça afrouxa."
OK. Deixa só eu passar uma água no rosto e já vou pra lá, certo?
"Ela sorri e sopra um beijo. Deseja 'boa sorte' em silêncio e bate
a porta."
"Tenho trinta e dois anos. O espelho do lavabo me encara como se
não me conhecesse e, enquanto gotejo sobre a pia, ouço meu nome
pelo comunicador interno. A voz é metálica e indiferente. Aqui sou
apenas uma palavra desprovida de sentido, uma bandeira sob a qual
vários se abrigam e garantem um salário e a esperança de glória
futura. Mais uma vez engolindo a raiva incipiente, visto o jaleco
sobre o paletó amarrotado, cheio de caspa, e saio."
"A janela da sala de testes mostra o cenário desértico lá fora.
Aqui dentro há uma paleta de cores monótonas. Toda a equipe me
deseja bom dia. Os militares, não."
Bom dia, senhores.
"Encaro os rostos esverdeados, feios, com falso entusiasmo, enquanto
observo pela última vez o mundo antes que a floresta que mora em
mim o engula. Lá fora, deitada sobre a areia amarela, a bomba
gama dorme tranqüila."
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