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Hellblazer # 13

Por Fábio Fernandes

Ano Sabático - Parte I
Lost in the Supermarket

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So far away, doesn't anybody stay in one place anymore?
It would be so fine to see your face at my door
Doesn't help to know
you're so far away


So far away.

Tão longe.

É assim que ele se sente agora.

Os versos da canção de Carole King que o vigia do portão de Ravenscar estava ouvindo no radinho em sua guarita ainda ecoam em sua cabeça. Fucking folk singers.

Ele detesta Carole King. Mas, ao passar em frente a uma deli e ouvir a mesma canção novamente, fica difícil segurar as lágrimas.

Porque ela tem razão.

Ninguém fica mais no mesmo lugar. Tudo muda. Tudo mudou.

Seus amigos de banda não estão mais juntos. Chas, Paul. Todos se mudaram. E não deixaram endereço. Sua irmã Cheryl nunca foi visitá-lo em dois anos de internação.

O dia é 3 de janeiro de 1980. E John Constantine está sozinho no mundo.

"Então é isso." — ele pensa — "Dois anos numa instituição psiquiátrica de segurança máxima e tchau e bênção. Pensando bem, sem bênção: te mandam pra fora com um pé na bunda mesmo."

A única coisa que Constantine ganhou na saída foi exatamente aquilo com que entrou. Uma sacola de lona surrada com seus personal effects, as coisas que levava consigo ao dar entrada na instituição. Não era muita coisa: uma calça jeans velha e rasgada nos joelhos, uma camiseta cinza (que um dia devia ter sido branca, mas nem ele se lembra mais da cor original) com as palavras "Anarchy in the UK" pintadas a spray, um casaco de couro praticamente esfrangalhado e um par de botas Doc Martens que vão até a canela e até que protegeriam bem do frio — se as solas não estivessem quase furadas.

Exatamente aquilo com que entrou?

"I don´t think so." — ele pensa, ao perceber que seu relógio de pulso não está na sacola. Ainda pensa em voltar para reclamar, mas para quê?

Pelo menos lhe deram alguma coisa em troca. De muito má vontade, mas vá lá: o endereço de um albergue onde ele poderia passar alguns dias. Além de alguns trocados para o trem e o metrô. "Não vá gastar tudo em bebida, hein?", um guarda engraçadinho ainda teve a cara-de-pau de dizer. Você o deixou em paz, era novo, entrou em Ravenscar depois de você, nem sabia por que você estava lá. Se soubesse, ele não teria feito brincadeiras. Teria torturado você. Como os outros.

O albergue é metodista e fica em Bayswater, uma região infestada de brasileiros, tanto que recebeu da imprensa o apelido engraçadinho (engraçadinho no sentido de "sem a menor graça", como tudo o que é oficialmente britânico, ele pensa) de Brazilwater. Ele até que vai com a cara dos brasileiros (principalmente com a bunda das brasileiras), mas sua experiência no Rio de Janeiro... bem, ele não pode dizer que não foi inesquecível. Mas se não puder jamais voltar ao Brasil, não fará a menor diferença.

Ele é bem atendido, sem a frieza de costume de seus compatriotas. Até estranha. Só então percebe que vários funcionários (a maioria com as funções mais baixas, como faxineiros e cozinheiros) são brasileiros.

Assim como mrs. Deolinda (pronuncia-se "day-oh-linda", pelo menos foi o que ele entendeu depois que ela repetiu cinco vezes), uma senhora negra brasileira, mas que não se envolve com bruxaria, longe disso. A única coisa mágica ali é o carneiro com hortelã que ela faz para o jantar. É uma delícia. Constantine não comia bem assim há muito tempo.

Ele baixa a cabeça. De longe, dona Deolinda (mineira de Itabira e missionária metodista) dá um pequeno sorriso, porque acha que o rapazinho louro, magrinho e descabelado, com jeito de perdido neste mundo de Jesus, está agradecendo ao Pai Celestial pela refeição que vai ter. Mas Constantine mantém a cabeça baixa para que ninguém o veja chorando.

Constantine não dorme.

Isso não tem nada de incomum. Ele não prega o olho sem ajuda de remédios há dois anos. E a alta significa — pelo menos nos primeiros dias, enquanto ele não mandar aviar a receita em alguma farmácia de hospital público — que ele não dormirá.

Pois, toda vez que ele fecha os olhos, eles continuam abertos.

É como se ele simplesmente saísse de um quarto e entrasse em outro. Há uma transição, mas não um fim.

Demônios, pactos, gritos, sangue, sangue, sangue, senhor das trevas, deus do universo inferior, idolatrado salve salve save me save me pelo amor de Deus não me deixe aqui não me deixe.

Os gritos da menina misturados à voz impossivelmente grave e masculina do demônio que a possuiu quando Constantine tentava salvá-la de outro. Imagens de pesadelo que se misturam às alucinações das drogas que injetaram nele em Ravenscar. Mas ninguém tentou convencê-lo de que o que tudo o que ele havia sofrido não era real. Não havia interesse. Para todos os efeitos, ele havia assassinado a filha do dono do bar onde eles se apresentavam. Uma criança. O corpo nunca foi encontrado. Como evidência, apenas um braço — o braço que você ainda segurava, em estado de choque, quando a polícia chegou.

Nessas horas Constantine tenta ser racional. Mas, no fundo, ele sabe que o pesadelo que ela ainda está vivendo — seja onde for — é e sempre será pior que o dele. O que não o consola nem dá sossego às suas noites.

Lugar por lugar, ele preferia ficar ao relento no Hyde Park. Na verdade, qualquer lugar serviria, desde que fosse aberto. Ar livre e sol.

Infelizmente, janeiro na Inglaterra não é o melhor momento para ar livre e sol.

O Hyde Park está feio. Ele nunca havia se importado muito com o parque antes — para ele, era só um lugar para cortar caminho, ou então bater uma bola com os amigos em domingos de sol (ocasionalmente comer uma groupie do Membrane nos arbustos perto do Serpentine Lake).

Hoje, é só neve e lama. E só agora — na ausência — Constantine realmente percebe o quanto aquele parque era importante para ele.

Mas agora é tarde.

O albergue fica apenas a duas quadras de uma das entradas do parque. A mesma distância separa sua nova moradia de um pub. Mas ele não tem grana nem para um half pint de uma lager barata.

"Que vontade louca de fumar, caralho." — ele pensa. Sentindo uma pena fodida de si mesmo.

Mas não chora. Não com mulheres por perto. Em pé na entrada do albergue, uma moça não faz absolutamente nada. Simplesmente está ali, fumando um cigarro mais do que bem-vindo para Constantine. É como se ela estivesse ali apenas como um símbolo de alguma coisa. Naquele momento, do desejo de fumar.

Got a smoke? — ele pergunta, surpreendentemente tímido, a voz baixa. Não está mais acostumado a falar com as pessoas.

Ela não responde. Mas mete a mão no bolso do casaco de couro preto (bem mais novo e bonito que o dele) e tira um maço de Silk Cut. Ele estende a mão para pegar um cigarro. A mão treme. Não é de frio. Ele não havia notado isso antes.

Thanks. — ele diz — Você também mora aqui?

Ela dá de ombros.

— Eu sobrevivo. — ela diz. E ele entende exatamente o que ela quer dizer.

Constantine olha a moça com atenção. Baixinha, magra, cabelos pretos curtos, parece um pouco uma atriz nova, que ele havia visto ontem mesmo num filme na tevê do albergue, uma tal de Helena Bonham Carter (nome comprido demais, ele pensa, essa mulher deveria se decidir por dois nomes apenas).

Ele dá uma longa tragada, saboreando o cigarro. Fucking good. Quando se dá conta, está sorrindo de puro prazer.

— John Constantine. — ele diz, uma das mãos no bolso do casaco, a outra ainda segurando o cigarro. Ela, exatamente na mesma posição, sem olhar para ele.

— Mary Hunter. — ela diz.

Mais tarde, na solidão do seu quarto, ele permanece acordado um bom tempo. Mas, desta vez, não tem nada a ver com seus pesadelos.

Seu pau está duro há mais de uma hora. Só de pensar em Mary.

Constantine não sabe o que é sexo há muito tempo. Em Ravenscar, todos ficam dopados demais para se masturbarem.

Ele leva todo esse tempo para se lembrar de como se faz a coisa. Mas faz. E saboreia cada momento como se fosse uma tragada daquele Silk Cut que fumou ao lado dela. Porque agora ela não está ali apenas como um símbolo do desejo de fumar.

É o seu melhor orgasmo em anos.

Pela primeira vez desde o incidente, Constantine consegue dormir algumas horas.

Mas nada dura para sempre. O que é bom, então, dura ainda menos. No dia seguinte, nem sinal da garota. Constantine não mete a cara para fora do albergue. O frio aumentou durante a madrugada.

Mais um dia se passa em frente à TV. Ele tenta se manter informado, mas para quê? Ficar vendo reprises de Doctor Who e as últimas notícias sobre acordos entre Reagan e Thatcher, a mais nova escrota na Downing Street? What´s the point?

No jantar, como quem não quer nada, pergunta para mrs. Day-oh-linda onde está Mary. A senhora responde que o prazo de permanência dela acabou ontem cedo, e ela teve de ir embora.

— Para onde? — ele pergunta. A velha senhora balança a cabeça, não faz a menor idéia. E ainda pergunta:

— Você já sabe para onde vai quando for embora daqui?

O prazo de permanência dos hóspedes sociais do albergue é de sete dias. Depois disso, eles estão por conta própria, sem ajuda de mais ninguém.

Constantine não espera o fim do prazo. Na manhã seguinte, depois do café (what the hell, um homem tem que comer, afinal), ele pega sua sacola praticamente vazia e vai embora.

Na rua, ele arrisca ligar mais uma vez para Chas. Mas sabe que o número do telefone dele mudou. O de Paul também. Bom, só faltam John e Ringo, ele pensa, tentando arrancar de si mesmo algum sorriso com a brincadeira sem graça. Não consegue.

Entra numa deli. O paquistanês que o atende olha para suas roupas surradas com cara feia. Pede um café. Enquanto o homem liga, com visível má vontade, a máquina de expresso, ele aproveita para olhar discretamente ao redor. E entende o porquê do olhar do sujeito.

Homens de terno e gravata, lendo o The Evening Standard. Mulheres hipermaquiadas, com tailleurs pretos, brancos ou preto-e-branco, fofocando ou lendo o Daily Mirror. E os cabelos. Meu deus, os cabelos. Esculturas cobertas de laquê, parecendo bolos de noiva do inferno. Os cabelos dos homens também não ficam atrás.

Quando ele saca as parcas moedas do bolso para pagar o café, o paquistanês faz um gesto de desprezo.

— O cavalheiro aqui já pagou. — e faz um gesto de cabeça para a esquerda de Constantine.

O homem ao lado de John Constantine também usa terno, mas sem gravata. Vestido todo em azul-marinho (por dentro, uma blusa de lã branca grossa com gola rulê), usa uma capa fora-de-moda, com uma corrente dourada que a prende no pescoço, algo entre um estilo swinging London 1968 e um tipo da era vitoriana. Seja como for, muito deslocado ali, até mesmo em comparação com os bonecos de bolo de casamento ao redor. Segura numa das mãos (que usam luvas, mas com o frio lá fora, isso não é nada fora do normal) um chapéu fedora também azul-marinho. Os cabelos dele são inteiramente grisalhos. Os olhos parecem negros, mas na verdade, são de um tom indefinível. E não param de encarar Constantine.

Então ele percebe logo de quem se trata.

— Sai fora, viado. — ele diz — Você tá pensando o quê, arsehole? Eu gosto de mulher. E eu pago meu próprio café. — bate as moedas com força no balcão.

Todo mundo na deli interrompe o que está fazendo só para assistir a cena. O paquistanês simplesmente pega as moedas e as atira com violência porta afora.

Sorry, sir. — ele se dirige ao homem grisalho. E, para Constantine: — E você, fora. Não queremos você mais aqui, está entendendo? Você não é bem-vindo.

— Como se eu quisesse ficar aqui mais um segundo! — Constantine diz, saindo com as mãos nos bolsos. Deixa o café no balcão. Deixa para trás as moedas que ficaram na calçada.

Não anda mais de cinco passos quando ouve a voz do seu lado.

É o grisalho, estendendo o copo de café que ele deixou na deli.

— Não sou homossexual, John Constantine. — ele diz, sério.

Whaddafuck...? Como é que você sabe meu nome?

— Tome seu café. Está muito frio aqui fora, e você precisa estar consciente para me ouvir.

Constantine bufa. Mas aceita o café. É melhor que esse freak tenha algo a dizer, senão vai tomar uma bifa no meio dos cornos.


Continua.




 
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