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Por
Marcelo Augusto Galvão
Tortura
Arrggh!
O grito de Ben Grimm ecoou, abalando as paredes da sala enquanto o sangue escorria da sua boca.
Doeu ? questionou uma voz doce.
Ai, pra caramba!
Certo. Serei mais cuidadosa. Pode bochechar e cuspir, sr. Grimm.
Se inclinando para não sujar a camisa pólo que ganhara de presente no Natal, Benjamin Grimm, conhecido também como o Coisa, obedeceu a mulher vestida de branco ao seu lado e respondeu:
Poxa, doutora, desse jeito a senhora vai arrancar minha boca. Nem um soco do Hulk dói tanto...
Desculpe-me, sr. Grimm. Mas é que temos uma bolsa periodontal bem feia aqui. explicou a cirurgiã-dentista, apontando com uma cureta a região afetada. O simples toque do instrumento metálico fez Ben pular, fazendo ranger a cadeira sob a qual se encontrava.
Por favor, não se mexa muito. advertiu a dra. Lerby Apesar de a cadeira ser reforçada para pacientes com o peso acima do normal, o senhor é sempre um desafio... completou, dando uma pequena risada.
Tá certo. respondeu o enorme paciente. A dra. Lerby era especialista no tratamento de pacientes obesos (55% da população americana, uma fatia do mercado odontológico promissor nos dias de hoje), o que explicava a cadeira com reforços extras, a única naquela parte de Nova York capaz de sustentar o corpulento integrante do Quarteto Fantástico.
Como dizia, a causa deste inchaço na sua gengiva nada mais é do que uma bolsa periodontal localizada no molar superior direito.
Eu não sou inteligente como o Borracha pra entender esse palavreado técnico, doutora. disse Ben, se referindo ao intelecto de Reed Richards, o Senhor Fantástico Afinal de contas, isso aí na minha boca é o quê?
Bom, em linguagem leiga, significa que existe um acúmulo anormal de resíduos de alimentos entre a sua gengiva e esse dente aqui. respondeu, direcionando o foco de luz para a boca de Ben Provocando este inchaço e a conseqüente sensibilidade.
E bota sensibilidade nisso! Só de passar a língua já dói!
Não duvido. Pelo tamanho da bolsa, acredito que já faz alguns dias que esse acúmulo começou.
Hã, é, deve ser mesmo, eu nem notei... tava muito ocupado na, hmmm, na Zona Negativa. ele balbuciou uma explicação. Que não passava de uma desculpa esfarrapada, é claro. Apesar de há dias sentir um incômodo persistente, o medo irracional de ir ao dentista era mais forte. Até que nesta manhã a dor falou mais alto e Ben se viu forçado a marcar uma consulta.
Certo. É melhor começarmos a raspagem e.. oh-oh!
Os olhos azuis do paciente brilharam de expectativa e temor.
Que foi, doutora?
Parece que achei mais uma coisinha aqui... respondeu a dentista, estreitando os olhos para enxergar melhor.
Ai!
Oh, me desculpe novamente. Acabei de encontrar uma cárie aqui no seu molar direito, sr. Grimm. Bem pequena, quase não dá para ver.
É, mas agora dá pra sentir...
Sim, felizmente não é nada demais. Podemos matar dois coelhos com uma cajadada só hoje mesmo. disse a dentista, se dirigindo para a estufa de esterilização.
Não tô entendendo...
O que vamos fazer agora é obturar essa cárie e depois limpar a bolsa...
Obturar?!
...e assim o senhor vai passar este final de semana sem esse incômodo na sua boca. completou.
Peraí, tá me dizendo que vai usar anestesia?!
É claro. disse a dentista, olhando para o rosto alaranjado cuja superfície se assemelhava ao leito seco de um rio Pelo visto a sua invulnerabilidade está restrita a camada externa da sua pele.
M-mas a injeção...
Não se preocupe, vai ser apenas uma picadinha, o senhor não vai sentir quase nada.
"Eu prefiro é tá num quebra-pau!" pensou Ben "Cadê o Galactus numa hora dessas? Por que diabos esses caras só aparecem nas horas mais impróprias?"
Os noventa minutos seguintes pareceram à Ben uma tortura. O irritante ruído da broca, o jato de água, a pistola de ar, todos aqueles instrumentos metálicos à sua volta lhe lembravam uma câmara de horrores moderna. Seu desconforto era tanto que ele não tirava os olhos da janela, procurando desesperadamente pelo sinal luminoso de emergência do Quarteto, uma desculpa perfeita para abandonar o consultório.
Acabamos, sr. Grimm! disse a dra. Lerby, com um belo sorriso.
Ufa! suspirou aliviado o Coisa, se levantando.
Após a dentista lhe recomendar o consumo de alimentos líquidos e pastosos por uns dias e receitar uma pomada cicatrizante, Ben Grimm se dirigiu à recepção para efetuar o pagamento. Sentados num confortável sofá, três pacientes aguardavam suas consultas se distraindo com revistas ou TV. Enquanto a secretária recebia o pagamento, Ben reparou em um homem absorto numa revista e que nem percebera a sua presença ali. O cabelo castanho, o queixo duplo, aquele corpo avantajado, eram familiares a Ben... apesar da mandíbula direita um pouco inchada (razão pela qual o tal homem estava ali, não havia dúvida), Ben não conseguia se recordar do nome dele...
Nesse mesmo instante, o homem levantou os olhos da sua leitura e se deparou com a enorme figura do Coisa. Uma expressão de surpresa surgiu no rosto dos dois quando se reconheceram mutuamente.
Cacilda, é o Blob! murmurou o Coisa, se recordando dos arquivos de supervilões do Quarteto.
Por um segundo ambos se encararam da cabeça aos pés, sem saber o que fazer. O bom senso, entretanto, prevaleceu. Uma briga naquele consultório, colocando em risco a vida de Lerby e seus pacientes, não levaria a lugar nenhum. O vilão, de rosto inchado e aparentando dor, também não parecia disposto a brigar.
"Além disso, ficar algumas horas sentado numa cadeira de dentista é uma coisa que não desejo nem pro meu pior inimigo!" refletiu Ben. Mas depois acrescentou: "Bom, quem sabe pro Destino..."
Despedindo-se da secretária e dando as costas para Blob, Benjamin Grimm seguiu em direção ao Edifício Baxter, preparando-se para passar os próximos dias tomando sopa e a famosa canja da Tia Petúnia.
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