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Contra-Ataque # 03

Por Robson Costa

O Dono da Bola

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Sempre foi assim. O pai de Arthur trabalhava em uma empresa que fabricava materiais esportivos. Quase toda semana, Arthur ganhava de presente algum novo produto que seria lançado. Claro que Arthur possuía uma coleção enorme de bolas de futebol. Tradicionais, coloridas, comemorativas. Bastava sair um novo modelo que o seu pai recebia como brinde e lhe entregava quando voltava para casa. E é claro que a alegria de Arthur também era a alegria da molecada do bairro. No dia seguinte, a bola participava das peladas do campinho do bairro.

Porém, a alegria de Arthur durava pouco nas peladas. Ele era o perna-de-pau. Tratava a bola como Majestade. A rotina era sempre a mesma. A molecada esperava Arthur chegar, trazendo a bola. Como ele era o dono da bola, ele poderia formar um dos times. No decorrer da pelada, os dotes de jogador de futebol (ou a falta, melhor dizendo) surgiam rapidamente. Logo, vinha o pedido:

— Arthur! Cara, você não se incomoda de deixar o Gabriel jogar no seu lugar?

Ou:

— O Tonho não é daqui do bairro e só está de visita. Ele pode te substituir?

E Arthur deixava. E não voltava mais para a partida. Sentava-se na lateral e assistia aos outros jogando. Até a hora em que todas as crianças eram chamadas pelas mães. Arthur ficava sozinho no campinho de futebol. Ele pegava a bola e voltava para casa. Sempre foi assim.

Houve uma vez que Arthur chegou no campinho decidido a não sair. Afinal, ele era o dono da bola. E se o dono da bola não joga, não tem bola. E assim transcorreu até o pedido:

— Arthur! O Andrezinho pode jogar um pouco no seu lugar?

— Não.

A resposta pegou a todos de surpresa.

— Eu sou o dono da bola. Se eu não jogo, ninguém joga.

O jogo parou. Por que o Arthur resolveu encrencar?, todos se perguntavam.

— Arthur, é rapidinho. No outro jogo, você começa jogando.

— Não saio. Escolhe outro para o Andrezinho substituir.

Arthur estava irredutível. Até que no meio da confusão, chegou o Beto.

— O que é que está acontecendo?

— O Arthur não quer sair para o Andrezinho entrar.

— Já falei: eu sou o dono da bola. Se eu não jogo, ninguém joga.

Beto se enfezou. Apesar de ter a mesma idade de todos ali, ele era bem maior e mais forte. Partiu bravo para cima do Arthur.

— Qual é? Vai ensebar agora?!

— Eu sou o...

— Porra! A gente sabe que você é o dono da bola, mas tu é ruim pra caralho! Tem duas pernas esquerdas. Agora sai e deixa um melhor entrar!

— Não, eu já disse. Se eu não...

Arthur não completou a frase. Beto mandou um direto. Arthur não viu mais nada. Ele foi ao chão e Beto continuou a bater.

— Vai dar uma de engraçadinho com outros, não comigo. Se não quer sair pro bem, sai por mal.

A molecada cercou os dois, comemorando cada soco que Arthur recebia. Ate que ele aceitou. Arthur se levantou com dificuldade e fez sinal para o Andrezinho entrar. Todos comemoraram e parabenizaram Beto. Arthur sentou-se no banco, mas de costas para o campo, remoendo suas dores e sua mágoa. No final do jogo, Beto foi até ele e lhe entregou a bola.

— Cara, não queria bater em você, mas não faz mais esta presepada, tá?

Arthur ficou no campinho. Deixou todos irem embora e as luzes se apagarem. Aproveitando da escuridão, ele foi para casa. Não queria que ninguém visse o olho roxo e os hematomas. Por sorte, seus pais não estavam em casa. Ele entrou rapidamente e se trancou no quarto. Quando seus pais souberam, queriam falar com os de Beto, mas Arthur os dissuadiu.

— É melhor deixar para lá.

Arthur não voltou ao campinho. Chegava do colégio e se trancava no quarto. Os garotos o procuravam, mas Arthur não atendia ninguém. Durante algum tempo, não houve peladas no campinho, pois Arthur não ia jogar. Os seus pais estavam preocupados.

— Já sei como alegrá-lo. — disse o pai de Arthur.

No outro dia, ele chegou com um embrulho e chamou o filho.

— Um presente para você, filho.

Arthur correu até o pai, pegou o presente todo feliz e começou a rasgar o papel que o cobria. Mas, pouco a pouco, a felicidade foi sumindo, até que ele se deparou com o presente: uma bola de futebol. Arthur não compreendia o que pai queria. Era uma bola linda, toda dourada.

— É a réplica da bola que será usada na final da Copa do Mundo. — explicou o pai para a esposa.

— Nossa, que bola linda, Arthur. O que você acha? — perguntou a mãe.

— É. Ela é muito bonita. Vou para o meu quarto. Tô sem fome, mãe. Já vou dormir.

A felicidade dos pais murchou. Eles perceberam que o presente não causou o impacto que eles desejavam. Arthur voltou para o quarto e trancou a porta. Não queria jantar. Colocou a bola na parte mais alta do seu armário. Não queria vê-la. Ele entendeu que o pai queria alegrá-lo com o presente, mas uma bola? Trancou o armário e deitou-se na cama. Chorou e acabou adormecendo.

No outro dia, quando acordou, Arthur se surpreendeu com a bola que seu pai tinha lhe dado, do seu lado, em cima do travesseiro. Olhou para o armário. Ele continuava trancado, como também a porta do seu quarto. Como a bola foi parar ali?

"Será que dei uma de sonâmbulo?" — pensou. Ele, então, jogou a bola para um canto. Quando, para sua surpresa, ela retornou e parou aos seus pés.

"Mas o que está acontecendo aqui?" — se perguntou.

Enquanto tentava entender o que estava acontecendo, Arthur ficou brincando com a bola quando, de repente, sem ele perceber, estava fazendo embaixadas com ela, sentado na cama. Cada vez mais, ele se assustava com o que estava acontecendo. Ele parou imediatamente e a bola rolou para o meio do quarto.

"Será que não estou ficando doido? Isto é real mesmo?"

Ele deu uma ordem:

— Venha cá, bola.

E, como se fosse de controle remoto, ela rolou até os seus pés. A tristeza acabara de ir embora. Uma alegria sem limites e um plano começaram a nascer naquele momento. Arthur continuou não aparecendo no campinho, mas os seus pais perceberam, que depois do presente, ele estava mais alegre. Ele chegava da escola e ia para o quarto treinar o controle sobre a bola. Quando se sentiu confiante, procurou o pai:

— Pai, por que a sua empresa não pode patrocinar um torneio de futebol entre os times do bairro?

O pai de Arthur achou interessante a idéia e falou que iria propor para os seus chefes. Uma semana depois, veio a notícia: eles gostaram da idéia e promoveriam um campeonato de futebol no bairro. A notícia correu logo e todos ficaram animados. Conversavam no campinho, quando Arthur chegou, trazendo uma bola. O aborrecimento que havia entre Arthur e os outros meninos desapareceu, e eles jogaram como sempre, ou seja, Arthur montou o time e, depois de um tempo, estava sentado no banco, vendo os outros jogar.

"Eles não perdem por esperar." — pensou.

No dia do torneio, estavam todos lá. Seriam quatro times, montados na hora. Seriam escolhidos quatro garotos para serem os capitães dos times e responsáveis pela escalação. Todos concordaram que um dos capitães seria o Arthur, pois ele havia conseguido o patrocínio com o pai. Os outros três foram escolhidos por sorteio. Depois que os times foram montados, Arthur fez mais uma surpresa:

— Como bola do torneio, nós usaremos esta. — e apresentou a sua bola dourada.

Todos ficaram boquiabertos. Era igualzinha à bola da final da Copa. Ela era linda.

"Mas ela é só minha." — pensou Arthur.

O torneio começou. Decidiram que seria na base do mata-mata. Ou seja, quem perdesse estaria fora. O primeiro jogo foi entre o time do Tonho e o do Andrezinho. Terminou com a vitória do time do Andrezinho. O jogo seguinte seria entre o time do Arthur contra o do Beto. Os garotos apostavam quanto tempo Arthur jogaria, porém, para surpresa de todos, Arthur virou um craque. Driblava, fazia lançamentos precisos, desequilibrou a partida. O seu time ganhou de 4 x 0, com dois gols seus. Beto não acreditava no que estava acontecendo. Arthur comemorava com o seu time.

"Se eles soubessem da verdade..." — pensava, rindo por dentro.

A bola atendia a todos os seus comandos mentais e, para quem assistia, Arthur tinha virado um craque. Ia começar a final, quando Andrezinho chamou Arthur e o juiz para uma conversa.

— Aquela entrada que o Carlão recebeu durante o jogo foi feia. Ele não está se agüentando em pé. Por isso, eu posso escolher um outro para substituí-lo? — falou Andrezinho.

— Alguma coisa contra, Arthur? — perguntou o juiz.

— Quem é o substituto?

— Meu primo, o Douglas.

Arthur conhecia Douglas. Era o craque do bairro. Estava jogando nas categorias inferiores do clube do bairro e o time tinha ganhado vários campeonatos. O consenso geral que o destino dele era a seleção brasileira.

— OK! Pode chamá-lo.

Enquanto Andrezinho corria para chamar o primo, Arthur pensava no vexame que faria Douglas passar. Começou o jogo. Os times estavam muito equilibrados, devido ao talento de Douglas e o poder de Arthur sobre a bola dourada. Arthur tornou-se o craque revelação do torneio. Todos estavam admirados com a mudança dele. Mas Douglas também espantava a todos. O jogo continuou 0 x 0, até o início do segundo tempo. Arthur havia decidido que a vitória começaria ali. Ele então ordenou à bola:

"Vai direto para o gol."

Ele chutou e a bola foi em direção do gol adversário, com tal velocidade que ninguém conseguia alcançá-la. De repente, surgiu Douglas e interrompeu a trajetória da bola. Matou no peito e avançou em direção do gol do time de Arthur. Ele não entendeu como Douglas havia conseguido isso. Imediatamente, passou a ordenar para a bola parar ou sair para a lateral, mas ela não o atendia. Desesperado, ele partiu atrás de Douglas, junto com os seus colegas de time, mas não conseguiram detê-lo. Na entrada da grande área, Douglas chutou forte e fez o gol. Os companheiros de Douglas correrram até o craque e todos o abraçaram, enquanto o time de Arthur olhava cabisbaixo. Arthur foi até o gol e pegou a bola.

"Por que você não me atendeu?"

Foi então que ele entendeu.

"Você me traiu! Até você! Você o preferiu a mim!"

Arthur foi tomado por uma mistura de sentimentos: ciúme, raiva, inveja, desespero. Tudo escureceu para ele. Ele pegou a bola e saiu correndo do campinho. Os dois times ficaram perplexos com a atitude e os jogadores saíram atrás dele, como todos os que assistiam ao jogo. Arthur corria abraçado à bola. Ele sentia que ela tentava escapar, mas ele não deixava, apertando mais forte contra o seu peito. Ele a xingava de traidora. Arthur olhou para trás e viu que as pessoas estavam quase o alcançando. Foi, então que, ao virar em uma esquina, ele viu o caminhão de lixo, que estava fazendo a coleta. Naquele momento, o motorista tinha acionado o mecanismo que compactava o lixo para dentro da caçamba do caminhão. Arthur não pensou duas vezes. Correu até o caminhão e jogou a bola para dentro. Todos viram a ação, mas nada mais podia ser feito. A bola foi pega pelo mecanismo e levada para dentro do triturador. Arthur ouviu o estouro.

— Mas o que você fez, filho? — perguntou o seu pai, abismado com tudo que acontecera.

— Eu sou o dono da bola. Se eu não jogo, ninguém joga.

Até hoje, ninguém entendeu a atitude de Arthur e ele nunca falou. Depois do campeonato inacabado, a família de Arthur mudou do bairro. Os vizinhos contam, que no dia seguinte, todas as bolas que ele havia recebido do pai foram furadas uma a uma com uma faca. Ninguém quis continuar o torneio, que terminou sem um vencedor declarado, apesar do placar. O que ninguém entendia era por que, ao correr com a bola, ele a chamava de traidora.




 
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