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Por
Eduardo Regis
Trocando as Bolas
Seu Joca arrumou a mesinha. Colocou-a em posição estratégica e a encheu de petiscos e cerveja. Ainda faltava uma hora pro jogo e ele já estava sentando na sua poltrona se preparando para a semifinal. Cervejinha gelada descendo a goela. O coração palpitando aquele hino:
Hei de torcer, torcer, torcer
Hei de torcer até morrer
Morrer, morrer
Pois a torcida americana...
O jogo começou. A cada jogada, Seu Joca soltava um comentário. No alto dos seus 63 anos, ele franzia as rugas e fazia cara de sério apenas para dizer a ele mesmo qual seria o esquema tático mais adequado.
"Joga o Ademir pela esquerda. O Juninho tem que entrar pela direita e o Adão ficar no fundo, tirando o perigo da rede."
Quando a bola quase entrava no gol, então, nossa, era uma emoção sem igual. Parecia que Seu Joca estava prestes a infartar, mas que nada, era só felicidade. Uma felicidade que não se compra ou se aprende, só nascendo com ela pra entender. Desde quando era Joquinha ele gostava da pelota. Jogava uma partidinha com bola de meia todos os dias depois da escola. Naquela época, já queria ser jogador, mas a vida o empurrou pro ramo bancário. Virou torcedor fanático, do tipo que tem até abajur do América. Os anos passaram e a paixão só aumentou. Agora estava ali, em frente à televisão, assistindo à semifinal. Queria mesmo era estar no estádio, mas a idade já pesava, e só ia em jogos fundamentais.
"Vou na final!" ele pensava, enquanto assistia a partida. O segundo tempo teve início e, novamente, Seu Joca soltou o técnico que havia dentro dele. Por fim, o jogo terminou com vitória do América sobre o Olaria, e do álcool sobre o Seu Joca.
"Uma cervejinha não faz mal a ninguém."
É, Seu Joca. Uma não, mas duas, três... doze! Saiu alucinado pelas ruas. Arriscou uns pulinhos enquanto gritava o nome do time. Passava pelos porteiros de todos os prédios exibindo a camisa e beijando o escudo. Parecia uma criança, mas todos já estavam acostumados. A esposa, Janete, correu atrás dele, mas desistiu na primeira esquina.
"Esse Joca um dia morre por causa do América." Dona Janete sabia das coisas.
Joca parou no primeiro bar que encontrou.
Desce uma cervejinha.
Sentou-se numa mesa de americanos e começou a debater. Eles cantavam e bebiam, xingavam os torcedores do outro time e bebiam, gargalhavam e bebiam.
Seu Joca já estava com a visão rubra, e nem era de tanto fanatismo pelo time colorado, era de tão embriagado que estava. Tentou levantar-se. Seus olhos se arregalaram quando viu uma bola em sua frente. Uma bola de futebol, oficial, com o escudo do América. Animou-se e girou o corpo para armar um chute. O goleiro estava preparado, mas dava pra sentir o nervosismo.
Ele enfrentava o "grande Joca". Surgiu um adversário ao seu lado, Seu Joca sambou prum lado, sambou pro outro, e com uma ginga incrível livrou-se dele.
Ele desafiava as leis da física, era uma habilidade incrível. Ficou livre na grande área com a bola, preparou o chute e foi! Seu Joca deu de barriga no chão do bar, aos risos de uma platéia bêbada. Não tinha jogo nenhum, pelo menos não na realidade, somente na cabeça alcoolizada de Joca. Uma mão se estendeu para ajudá-lo a se levantar. Ele viu o rosto de um jovem homem e aceitou de bom grado sua ajuda. Quando as duas mãos se tocaram, no entanto, algo bizarro aconteceu. Todo o efeito do álcool sumiu num piscar de olhos. Joca passou a se sentir novo em folha, como nunca havia se sentindo em toda a sua vida. Sentia-se como se tivesse sido ligado a uma poderosa bateria.
A visão se tornou clara novamente, e aí ele viu, caído no chão, à sua frente, seu próprio corpo balbuciando loucuras e rolando. Reparou que estava no corpo do jovem que queria ajudá-lo e, desesperado, tentou levantar o "Seu Joca". Assim que tocou seu antigo corpo, levou um choque e, subitamente, se sentiu deitado no chão novamente. O jovem homem colocou a mão na cabeça e atravessou a rua muito confuso, parando todo o trânsito.
"Mas que coisa estranha!" Seu Joca pensou, enquanto se levantou para correr pra casa.
Ao fechar a porta do quarto, sentou-se em frente à televisão e comecou a refletir sobre o que tinha acontecido. Tinha certeza de que não fora alucinação comum aos beberrões, nem mesmo um sonho estranho. Algo sobrenatural ocorrera. É, Joca, será que depois de tanto tempo de cervejinha, finalmente você não tinha ficado louco de vez? Ele achava que não. Tinha certeza do que tinha acontecido. Eles tinham trocado de corpos. A dúvida agora era: quem teria sido o responsável? Joca ou o jovem? Por dias ficou trancado em casa com essa dúvida martelando sua cabeça. Janete estranhou o marido, que comia pouco e fazia de tudo para não esbarrar nela, nem na faxineira.
Que coisa estranha, homem! Parece até que tá doente!
Vai ver ele estava mesmo. Talvez devesse procurar um médico.
"E dizer o quê? Doutor, troquei de corpo! Não... iam me internar num asilo."
Que dureza essa situação do Seu Joca.
Acontece que o homem chegou aonde chegou na escala evolutiva por causa da sua curiosidade, em grande parte. Seu Joca nunca fora um entusiasta da curiosidade, mas era algo inato ao homem. Ele simplesmente não aguentava mais não saber o que tinha acontecido e tomou uma decisão corajosa. Num dia, durante o meio da manhã, Seu Joca chegou por trás da esposa e a agarrou.
"Quero trocar com ela. Quero trocar com ela."
Um mantra se repetia em sua cabeça. Os dois se soltaram e, de repente, Dona Janete gritou:
Gooooooool!
Era Seu Joca encarnado no corpo da mulher. Janete estava perdida, via a si mesma gritando e pulando enquanto se sentia pertencer ao corpo do marido.
O susto foi muito, ela desmaiou. "Joca" olhou para seu corpo caído no chão da cozinha.
"Putz! E agora?"
Tentou carregar o corpo para a cama, mas era muito pesado.
"Parei com as peladas, fiquei gordo. Que tristeza."
Triste conclusão, Joca. A mulher acordou e como ele estava carregando o corpo, voltaram ao normal. Dona Janete ficou dois dias desesperada, procurou médicos e mais médicos, infelizmente ninguém soube lhe diagnosticar nada.
"Que coisa incrível! Mais fantástico do que o gol de Oliveto contra o Madureira! Eu possuo poderes fantásticos! Eu posso trocar de corpo com qualquer um! Posso ficar rico, fazer apresentações! Posso... posso... eu sou incrível!"
Seu Joca pulava de um lado para o outro da sala.
Durante mais quatro dias, Joca ficou treinando seu poder. Às vezes, trocava de corpo com sua esposa tão rapidamente que ela só sentia uma tonteira. Tentou trocar com o papagaio, mas percebeu que não dava certo. Notou também que era impossível trocar de corpo com sua esposa enquanto ela dormia, e o mais incrível, um belo dia conseguiu realizar tal proeza sem ao menos tocá-la. Isso o deixou extremamente animado.
Veio então o dia da final. América versus Fluminense, um clássico do futebol brasileiro. Seu Joca, que antes estava animado para ir ao estádio, preferiu ficar em casa, pois Janete estava reclamando de constantes tonturas e havia lhe pedido encaricidamente para que tomasse conta dela. A culpa pesou tanto que não pôde negar. O jogo estava prestes a começar e Seu Joca já estava posicionado frente à televisão. Salgadinhos e cerveja compunham o cenário e os comentários do narrador já começavam a invadir os ouvidos dos telespectadores. Foi quando Joca notou algo de estranho na escalação do time. Um dos maiores craques do América estava no banco!
"Que absurdo! "
Logo os comentaristas explicaram que era uma tática para poupar o jogador, mas Seu Joca não concordava!
"Poupar o cara na final? Mas que burrice!"
Seu Joca ficou indignado! Levantou da poltrona umas trinta vezes até o jogo começar, sempre xingando o técnico Barretinho. O jogo teve início e até o fim do primeiro tempo, foi só emoção. Emoção ruim! Uma pelada. Um jogo tenebroso. O América jogava tão mal quanto nunca, e o Fluminense só não tinha marcado gol ainda por pura sorte!
"Não e não! Não pode ficar assim."
No meio do intervalo, Janete passou por Joca avisando que a irmã vinha buscá-la para irem juntas a um médico novo. Seu Joca nem ouviu direito.
O segundo tempo teve início e nenhuma alteração no time havia sido feita. Seu Joca ficou irritadíssimo e resolveu tomar as rédeas da situação. Agora que estava sozinho em casa, tinha a chance de ouro em suas mãos! Foi até o quarto de ferramentas, catou uma corrente e um cadeado no armário e deu um jeito de se prender na poltrona e na grande mesa da sala. Antes, porém, havia se amordaçado. Esperou até darem um close no técnico Barretinho e tentou uma manobra ousada. Tentou trocar de corpo com ele pela tela da TV!
Por incrível que possa parecer, funcionou. Barretinho saiu instantaneamente do campo para a poltrona de Joca. Que desespero! Num piscar de olhos, estava se sentindo mais pesado, com uma respiração ofegante e ainda estava preso e amordaçado! Olhou para seu corpo e não se reconheceu. Entrou em imediato desespero!
Seu Joca se viu na beira do campo logo nos primeiros dois minutos do segundo tempo. Correu para fazer algumas substituições, gritou alguns esquemas táticos diferentes pelo campo. O time não entendia nada, não parecia o mesmo técnico que havia lhes passado instruções no vestiário. "Barretinho" havia assumido uma postura inédita ao técnico, e isso assustou e acordou o time. O América ganhou um novo vigor e partiu para cima do adversário com unhas e dentes à mostra. Não deu outra, gol do América. Seu Joca quase infartou de emoção! Se jogou no chão, pulou, gritou e cantou o hino com a torcida. Era um sonho que se realizava para ele.
O técnico verdadeiro, enquanto isso, agonizava de medo na poltrona. Preso em um pesadelo medonho. A TV ligada o mostrava rolando e pulando pelo campo. Era muito bizarro.
O fim do jogo se aproximava. Seu Joca já delirava de tanta emoção, ele era o rei do futebol! O homem mais feliz de todo o planeta! Não se aguentava!
Quando o juiz apitou o fim da partida e o América venceu a final por 1 x 0 em cima do Fluminense, Seu Joca arrancou a camisa e correu pelo campo abraçando todos os jogadores.
Na casa de Joca, Barretinho se desesperou mais ainda ao ouvir o barulho da fechadura se abrindo e, não resistindo mais, desfaleceu.
Seu Joca pulava de um lado para o outro quando sentiu uma tontura e caiu no campo, sem forças. Todos se reuniram ao seu redor, receosos. Seu Joca, ainda com alguma força, pediu para segurar a taça. Os paramédicos entraram correndo pelo campo para socorrer o homem, mas já era tarde. Dona Janete abriu a porta de casa e soltou um grito que despertou toda a vizinhança. Seu Joca estava amordaçado e acorrentado na poltrona de casa. Quando correu para ajudá-lo, percebeu que estava morto. O laudo médico acusou infarto agudo do miocárdio para Seu Joca e Barretinho, mas ele estava errado, a causa mortis havia sido outra: paixão pelo futebol. Hora da morte: 18:56.
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