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Capitão América # 12

Por Rafael Borges

Made in USA — Epílogo
The Hands That Built America

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"De todas as promessas, foi essa que pudemos manter?
De todos os sonhos, é esse que ainda tentamos alcançar?" (*)

Nova Orleans:

— Socorro!

O grito reverbera por entre os escombros de metal e concreto. Solitário, o velho já deveria ter percebido que ninguém será capaz de retirá-lo do centro da montanha de destroços em que sua residência se transformou.

Seu nome é Jean Baptiste. Aos 68 anos de idade, não viu necessidade em atender à ordem de evacuação da cidade quando o Katrina se aproximou. Afinal de contas, já havia vivenciado os estragos que o Furacão Betsy causou em 1965. Apenas algumas dúzias de pessoas foram afetadas. Além disso, que lugar pode ser mais seguro durante uma grande ventania do que seu próprio lar? Não é como se ele residisse em uma cabana, seu apartamento fica no segundo andar de um dos tradicionais edifícios coloridos que marcam a arquitetura da cidade.

Qual poderia ser sua surpresa quando a força dos ventos venceu a resistência dos diques construídos para impedir o alagamento da cidade pelas águas do Lago Pontchartrain? Em alguns pontos, o nível da água chegou a ultrapassar os sete metros, o bastante para comprometer a estrutura de edifícios e fazer a residência de Jean Baptiste vir abaixo.

Sob os escombros há mais de 60 horas, a idéia de morrer lutando pelo último fio de esperança lhe parece melhor do que simplesmente se entregar à fadiga de quase três dias de imobilidade. Então, ele volta a gritar:

— Socorro!

No início, o velho imagina que a luz púrpura que avista ao longe não passa de alucinação. Ela faz um som discreto, como o sibilar de uma cobra cascavel preparando-se para o bote. Seria a morte chegando finalmente?

Quando a pequena explosão livra caminho entre os destroços, trazendo um vislumbre longínquo do céu azul de Nova Orleans, ele percebe que não foi o anjo da morte que veio resgatá-lo.

— Nós vamos tirá-lo daí, mon ami. Agüente firme! — diz seu salvador, com carregado sotaque cajun.

— O homem teve sorte, Gambit. — comenta o Capitão América, usando seu escudo para retirar mais alguns pedaços de concreto partidos pelo poder do mutante — O nível da água não foi alto o bastante para que ele acabasse afogado.

— Sinto em discordar! — retruca Remy LeBeau sem parar, nem por um instante, as escavações — Veja a destruição ao seu redor e vai perceber que nenhuma pessoa teve sorte nessa cidade abandonada por Deus.

O Vingador e o X-man estão em meio a todo um bairro destruído pela força das águas. Nas últimas horas, eles lideraram os esforços dos poucos cidadãos locais que se mostraram dispostos a ajudar no resgate das vítimas que o furacão Katrina deixou para trás.

— Tem razão! — retifica Steve Roges, limpando o suor de sua testa — Mas não foi Deus quem abandonou essas pessoas à sua própria sorte.

Enquanto Gambit finalmente consegue alcançar o debilitado Jean Baptiste, o Capitão usa seu escudo para tapar o sol e avista a silhueta familiar de um helicóptero que invade o perímetro da cidade. É a primeira aeronave que se aproxima desde que foi decretada a lei marcial há três dias.

— Você consegue tirá-lo daí sozinho, LeBeau? — indaga o Capitão.

— Eu não vou parar até que cada um deles esteja a salvo, mon brave! — responde o mutante, retirando os últimos detritos que estavam sobre o sobrevivente, que não tem palavras para agradecer seu salvador.

— Parece que finalmente estamos recebendo visitantes importantes! — Rogers salta da pilha de destroços e parte em direção ao Superdome, a arena de esportes e espetáculos da cidade que se transformou em seu principal refúgio. É lá que o helicóptero vai pousar.

No percurso, o Vingador tenta não desviar sua atenção para as ruínas em que se transformou a cidade. Nova Orleans foi conhecida no mundo todo por sua alegria, sua música e suas festas. Agora, se encontra abandonada, com saques constantes e corpos que se empilham pelas ruas.

Ao adentrar nos portões da arena, o Capitão sente o fedor. É resultado de mais de dois mil refugiados que se encontram naquele lugar sem as mais rudimentares condições de higiene. Os remanescentes entre os cidadãos locais foram forçados a se rebaixar a pouco mais do que animais para conseguir sobreviver.

— Capitão América! — acena o presidente Fox, quando o herói finalmente se aproxima da área de pouso do helicóptero militar que trouxe a comitiva presidencial. — Me informaram que o encontraria por aqui!

— Tenho certeza de que a Agente 13 o alertou de minha vinda para cá assim que soube dos estragos causados pelo furacão. — responde o Capitão. — Estou na cidade há dois dias, ajudando no resgate das vítimas e organizando o abrigo para os refugiados.

— Antes de qualquer coisa, ainda não tive a chance de lhe agradecer devidamente por ter resolvido a situação em que estive envolvido em Londres. — Lucius Fox se refere à sua libertação do cativeiro em que era mantido por Talia Ghul. (**)

Entretanto, uma vez que o seqüestro do presidente nunca foi tornado público, ele não pode falar claramente. Mesmo assim, aplica um grande abraço no herói, que permanece impassível.

— Com todo o respeito, senhor presidente... — o Vingador interrompe o gesto de amizade por parte do político — Realmente gostaria de saber qual a razão para que o as primeiras forças de resgate demorassem tanto a chegar?

A pergunta incisiva surpreende Fox, que dá um passo atrás. Desde que assumiu seu cargo na Casa Branca há alguns meses, essa é a primeira vez em que ele foi questionado de forma tão direta.

— Na verdade... — hesita o presidente — Os satélites da Shield não conseguiram mostrar o real tamanho da devastação. E os recursos do exército se encontram reduzidos devido às ações no Afeganistão, na Latvéria e no Iraque...

O Capitão América apenas fecha seus olhos e abaixa sua cabeça.

Mais de mil pessoas perderam suas vidas em um desastre natural sem precedentes na história americana. E os militares e políticos de Washington são incapazes de desviar sua atenção das guerras que criaram para si mesmos. Incapazes de reagir com a rapidez necessária para evitar que mais vidas fossem perdidas na terra de ninguém que se tornou Nova Orleans.

Ao fundo, é possível avistar Gambit, que se aproxima do refúgio improvisado no Superdome, arrastando o recém resgatado Jean Baptiste.

O mutante foi o único herói que permaneceu na cidade durante todo o incidente e a quem o Capitão América recorreu quando chegou ao local assim que soube da situação. LeBeau e Steve Rogers mal se conheciam antes deste incidente. Agora, marcados por dois dias de intensas buscas por sobreviventes, encontrando sucessos e os inevitáveis fracassos, eles se reconhecem como irmãos em armas.

De longe, o cajun é capaz de compreender que o Capitão não está nada contente. Há mais pessoas para salvar e Remy nunca foi bom para lidar com autoridades. Depois de acomodar Jean Baptiste em segurança, ele dá meia-volta e retorna para a busca de sobreviventes entre os escombros.

— Senhor presidente, eu sei de sua capacidade de administração. — desabafa Steve Rogers, levantando o olhar para encarar Lucius Fox. — Sob seu comando, as empresas Wayne se transformaram no colosso que são hoje. E a economia do país já sente os primeiros resultados positivos de sua gestão.

A sua frente, o presidente permanece silencioso.

— Mas uma nação não pode ser comandada apenas por números. — prossegue o Sentinela da Liberdade, aumentando gradativamente seu tom de voz. — Não é possível governar um país usando apenas a lógica. Olhe ao seu redor!

A mão enluvada do herói aponta as centenas de famílias que se amontoam de forma subumana pelos corredores da arena esportiva.

— Olhe para cada um desses refugiados e você vai entender! — esbraveja o Capitão América — Chegou a hora de governar com o coração. É hora de demonstrar a cada cidadão que ele é um filho querido dessa terra.

Os soldados responsáveis pela escolta presidencial esboçam reação aos ânimos exaltados de Steve Rogers. Mas Lucius Fox acena para que deixem o homem desabafar.

— Por mais de uma vez, Capitão, eu lhe devo minha vida. — exclama o presidente. Emocionado, ele coloca sua mão sobre o ombro do Vingador. — Mas dessa vez, você fez algo mais difícil do que um resgate. Hoje, você me fez lembrar de todas as razões pelas quais eu desejei me tornar o presidente do meu país.

O Capitão, todavia, não se comove com suas palavras. Dá de costas ao presidente Fox e caminha lentamente de volta à área dos destroços. Antes de partir, ele se volta para trás e determina:

— Voltaremos a conversar quando o exército mandar o primeiro batalhão para o resgate. Até lá, eu tenho muito trabalho a fazer.


:: Notas do Autor

(*) O título dessa edição faz referência à música da banda irlandesa U2 que serviu de tema ao filme Gangues de Nova York. Na película, Martin Scorsese mostra que a "capital do mundo" foi construída sob um delicado equilíbrio entre as facções criminosas que dominavam a área. Na citação da letra, fica claro que vários dos valores do "sonho americano" ficaram de lado. voltar ao texto

(**) Na última edição. voltar ao texto

Essa foi minha última edição de Capitão América.

Durante os últimos treze meses (se contarmos o pequeno atraso ocorrido para a edição número cinco), esse personagem fez parte de minha vida quase que vinte e quatro horas por dia. Essa foi a minha chance de refletir sobre valores como nação, liberdade e justiça.

Com as aventuras de Steve Rogers, pude compreender melhor esse mundo louco em que vivemos. Um lugar em que cidades são abandonadas pelo governo depois de desastres naturais e onde soldados nazistas são escolhidos como emissários de Deus. Um planeta em que uma garota de dezesseis anos pode planejar a morte de seus pais e em que terroristas podem ser usados como justificativa para que países sejam tomados à força.

Não se engane. Vivemos em um tempo de supervilões e conspirações planetárias que superam a melhor das ficções científicas ou a mais imaginativa mente criminosa dos quadrinhos. A única diferença é que não existem super-heróis de verdade, apenas pessoas comuns. Heróis anônimos entre nós.

E cabe a cada um não perder a vontade de lutar por um mundo melhor.

— Rafael Borges




 
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